sempre que choveu, parou
#137: como é viver no país de milei? a resposta simples é "uma porcaria". a resposta mais elaborada é esta crônica
olá vocês!
um total de duas pessoas me perguntou no formulário da newsletter como é viver num país governado por javier milei. a resposta simples seria: uma bosta. mas como nada na vida é simples, vou tentar aprofundar aqui o que eu tenho visto e sentido desde que o doidinho do cachorro morto foi eleito. não espere uma tese com ideias bem concatenadas, eu não sou exatamente a melhor pessoa para isto. mas vou tentar organizar um fluxo de ideias aqui.
há um ditado gaucho muito usado por estas paragens para sinalizar a máxima de que tudo passa: “siempre que llovió, paró.”1 os gauchos eram os mestiços, trabalhadores rurais da região que abarca argentina, uruguai e rio grande do sul, no brasil. eram cavaleiros nômades e hábeis no trabalho da pecuária. fun fact: dizem que as expressões boludo e pelotudo vêm do uso das boleadeiras, uma arma feita com esferas de metal e cordas usadas para atingir e enrolar as patas do gado e depois empregada nas guerras de independência da região platense.
conhecia o dito de um vídeo do ex-presidente uruguaio pepe mujica, em discurso pelos 50 anos do golpe militar do chile, no ano passado. apesar da tristeza do fato de que esse horror pode voltar, se deixarmos, ele terminava a mensagem esperançoso, porque afinal não há mal que sempre dure. “a vida vale a pena ser vivida ao máximo. saibam, os mais novos, que ter sucesso na vida é levantar-se e recomeçar cada vez que se cai, no trabalho, no amor, em todas as questões humanas”.
“sempre que choveu parou” não é um libelo ao conformismo, do tipo “vamos só nos encolher e aguentar calados, porque alguma hora tudo isso vai passar”. pelo contrário, é um pedido para que não deixemos de movimentar nossos sonhos e afetos, que devagarinho a gente arromba essa porta de concreto, afinal, ela também não vai estar lá para sempre. é saber que não importa o que aconteça, a gente precisa seguir adiante. “é preciso estar atento e forte”, já dizia o antigo compositor baiano.
na teoria é bonito pensar que só depende dos nossos esforços, que milagrosamente o bem vai vencer, porque o bem sempre vence. na prática é um exercício extenuante estar politicamente ativo num mundo que quer afogar qualquer força nadando em sentido contrário à essa corrente de horror. mas o que cansa mais é quem tenta ver do brasil todo esse circo como se fosse um fator isolado da grande loucura que é a macro política latinoamericana (e mundial, né, o trump não é fruto de uma geração espontânea)
a eleição de escroques da laia de javier milei, jair bolsonaro e o arrotão de fanta dos estados unidos não é algo que dá e passa. sempre que choveu parou, mas a argentina ainda vai ter lama até a cintura por muito tempo; como o brasil, onde a extrema direita ocupa de maneira predatória congresso e prefeituras, pronta para impregnar de atraso e morte o fértil solo brasileiro; e lá nos estados unidos, que não somente não eliminou a lama, como votou pra ter mais tormenta nos próximos quatro anos.
como é viver em um país governado por milei, me perguntam os leitores fernando e samuel. e eu não posso dizer nada que não seja “terrível, mas não é como se já não estivesse uma porcaria antes”. inflação galopante? já existia antes, mas cresceu muito no governo do neoliberal mauricio macri e disparou loucamente nos anos alberto fernandez. logo a argentina está mais pobre que nunca, mas sejamos honestos, já estava a beira disso há algum tempo.
meios de comunicação un tanto duvidosos? da mesma maneira sempre teve. esse ovo da serpente foi chocado em cada manchete achincalhando movimentos populares, governos com ideais mais humanitários e os direitos humanos em geral. agora que o dia do cabelo maluco ambulante resolveu atacar todos os meios de comunicação, diários, telejornais e portais de notícias usam um tom bastante ofendidos e surpresos. o cachorro doido me mordeu, diz jornalista, que antes dizia “esse cachorro doido pode morder, mas é melhor que o peronismo”. te parece familiar?
o que eu tenho notado de diferente é que, do mesmo modo que no brasil nos anos da peste, neste momento a esquerda moderada, a esquerda radical, os movimentos dos trabalhadores, os estudantes, os feminismos, a ala lgbtqiapn+, a classe artística estão mais ativos (mas já estavam antes, só estão mais articulados, eu diria). semana passada teve a marcha do orgulho gay, que eu vou desde 2019 e neste ano ela me pareceu muito mais política que antes.
a outra diferença é aquela de sempre: os gremlins agora não esperam a água pra se reproduzir. com a escrotidão alcançando um caráter institucional, eles se sentem livres para habitar qualquer espaço público de debate para espalhar todo tipo de merda preconceituosa. aqui, o que no brasil chamam de “turma da lacração”, eles chamam de “progre”. e aí é aquela ladainha de sempre, qualquer simpatia pelos direitos humanos básicos é coisa de comunista. é ligeiramente inclinado aos direitos reprodutivos das mulheres? é de “abortero, asesino de nenes” pra baixo.
mas não caia no erro comum dos meios de comunicação brasileiros de achar que o mileísmo e o bolsonarismo são a mesma coisa. são frutos que crescem no mesmo galho da necropolítica, mas ainda assim, existem diferenças. os motivos que levaram tantas pessoas a cair na balela do saco de bosta do vivendas da barra são diferentes do que levou o grosso dos eleitores do jumento celestino daqui ao poder.
vamos a eles: grande parte dos eleitores, sobretudo nas camadas mais pobres queriam mudança, qualquer mudança, porque o governo de alberto foi desastroso, para dizer o mínimo. ineficaz em melhorar os índices econômicos, incapaz de combater o empobrecimento da população e avançando pouquíssimo em leis nos campos progressistas, ele chegou ao fim do governo sem nem tentar a reeleição, de tão desaplaudido que estava.
e pra piorar, mesmo atuando de forma razoável nas medidas para frear o avanço da covid 19, foi flagrado dando jantares clandestinos no momento mais pauleira do lockdown. e quando não precisava nada mais pra manchar sua imagem (e do progressismo em geral), a ex-primeira dama veio a público denunciar que sofria agressões constantes do então marido, quando este ainda era presidente. contrariando tiririca, pior do que está, sempre fica.
então mesmo sendo a coisa mais grotesca e absurda no cenário eleitoral do ano passado, milei era diferente de tudo. não era melhor, mas pelo menos era diferente. e é aí que reside a maior diferença entre o brasil e a argentina neste quesito. a argentina não sofreu um golpe, com um impeachment orquestrado para tirar a esquerda do poder movido por uma classe média-alta que queria barrar a ascenção da classe c. o que levou o bolsonarismo ao poder foi, entre tantas outras coisas, o ódio aos mais pobres.
o que levou o mileismo ao poder foi o ódio do povo à classe política. o mileismo não é um delírio de dondocas católicas com medo de que seus netos tomem mamadeira de piroca. é o resultado de uma facção que viu no empobrecimento recorde uma chance de entrar no jogo político. banheiro unissex? minha filha, tava faltando alimento no supermercado.
jair bolsonaro foi a pior coisa que aconteceu para a democracia brasileira depois da ditadura, logo depois vem o governo collor e um abismo depois vêm os outros governos. a argentina vive uma sucessão de governos ruins que não param de piorar, de modo que uma aposta num napoleão de hospício não parece tão grave se olharmos desde uma perspectiva histórica.
sabe aquela piada do cara que escolhe o picolé de bosta porque só tem de limão e de bosta e ele detesta limão? aqui a galera trocou o picolé de bosta pelo picolé de veneno porque queria um sabor ruim diferente pra variar. o importante naquele cenário eleitoral era mudar, se melhorasse alguma coisa já era lucro.
não que tenha melhorado a vida de ninguém. os índices de rejeição de milei são ali pela casa dos 50 e tantos por cento. mas não param de crescer, agora que o plano econômico não deu o resultado que prometiam. apesar dos factóides sobre um suposto superávit, os preços no supermercado não param de subir e isso pro eleitorado é mais vital que papo de economista. alguns amigos queridos votaram nele e isso meio que doeu, mas agora, menos de um ano da posse, já estão entre os mais críticos.
por isso é que eu consigo dialogar com quem votou no milei, mas não consigo pactuar ou reconciliar com quem votou no bolsonaro. se alguém votou no milei e ainda assim consegue ter um olhar crítico a esse governo atribulado, eu estou aberto ao debate. (se a pessoa o idolatra, aí eu abandono o caso, não há nada que se possa fazer). já quem votou no bolsonaro, salvo raríssimas excessões, estava movido por uma vontade de excluir, silenciar e aniquilar as diferenças. e sendo um homem gay, preto e pobre, eu não vou me juntar com quem acha ok ser escroto com gente igual a mim.
voltando à pergunta, este é um momento delicado no país, porque mesmo para um governo ruim, este está batendo o teto do horror. milei ataca, de maneira ativa e deliberada a educação e a saúde pública, a cultura, os movimentos sociais, as mulheres, a imprensa livre e um sem fim de etecéteras. e sem uma razão que não seja mostrar que pode.
mas mesmo com esse horror, ainda há vida lá fora e ela segue apesar de. viver em um país governado por javier milei é uma circunstância dentro de um cenário que já era difícil. mas a vida fora da esfera partidária continua. ainda temos contas pra pagar, famílias pra alimentar e leões para matar todo dia.
viver neste contexto é cansativo, mas a alternativa seria tomar o primeiro avião com destino à felicidade e isso custa mais recursos que possuo, tem uma logística impraticável nos dias de hoje e não tem uma garantia de que viveria num país sem a menor possibilidade de que um maníaco anti-democrata seja eleito. e apesar de tudo, buenos aires ainda é a minha cidade preferida no mundo e não é um bando de cães raivosos que vai tirar isso de mim.
logo, é lutar para viver com dignidade enquanto chove. e continuar lutando depois que pare de chover. porque nosso erro é achar que só trocar de presidente seja o bastante. o plenario brasileiro nunca esteve tão tomado pelas bancadas do boi, da bala e da bíblia. a gente acha que só demitindo um tirano e elegendo um cara gente-boa o mal vai ser vencido. mas o fascismo não nasceu sendo árvore. ele foi semeado, adubado, cultivado e mesmo depois de arrancado, ainda representa um perigo, porque envenenou o solo.
desculpa se não respondi o que esperavam que eu respondesse, mas é o que eu sinto e penso agora, e estou aberto a dialogar. e apesar do tom do texto, acredite em mim, eu sou otimista. mas não a ponto de deixar minha vida nas mãos de um governante que vai ocupar o trono um par de anos e depois ir de arrasta. porque entre esquerda e direita e centro, eu continuo sendo um proletário latinoamericano com conta vencendo todo mês.
antes de ir, dois recados
como mencionei, este texto surgiu das suas perguntas e sugestões. quer mandar a sua? clica no botão abaixo e sinta-se livre pra me mandar por privado críticas, sugestões, perguntas, o que seu coração mandar.
fernando e samuel, muito obrigado pela pergunta, há tempos pensava em escrever algo assim, mas tava com medo de mexer em um vespeiro. bom, há que enfrentar esses medos, não?
e ao leitor renato, que me mandou mensagem pedindo dicas de passeio em buenos aires, mil desculpas por não ter respondido a tempo, eu também estava de férias e só li sua mensagem bem depois. espero que você e sua namorada tenham aproveitado bem a cidade e levado as melhores lembranças.
e um abraço muito especial para todo mundo que passa por lá pra deixar mensagens fofas sobre a newsletter. muito bom saber que vocês gostam dos textos! muchas gracias por ler e pelas palavras lindas, elas me animam muito a seguir escrevendo.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
esta é a segunda edição consecutiva com chuva no título, não foi intencional, por favor, me desculpem, espero melhorar.
Texto lúcido e importante para esclarecer minha pergunta. Muito obrigado, Júnior. Bom saber que, apesar de, Buenos Aires continua pulsante. "é um exercício extenuante estar politicamente ativo num mundo que quer afogar qualquer força nadando em sentido contrário à essa corrente de horror." O horror aqui continua forte, como um seita, mas prossigamos na peleja. Abraço.
parabéns. não prometeu nada mas entregou uma história, que, se não concatenada, explica e faz sentido.