buchinho cheio, coração contente
#82: quer me ver feliz é comer minha comida com a boca boa. e repetir. eu amo gente boa de prato
olá vocês!
eu não sei se já disse aqui, mas eu amo cozinhar. mais que isso, eu amo cozinhar para alguém, para amigos, minha família, meu marido. acho que o preparo dedicado faz parte do resultado no sabor de um prato. e acho que todo adulto funcional, não importa classe social, gênero, raça e idade, deve saber cozinhar ao menos um prato simples. porque cozinhar nos aproxima dos nossos ancestrais, nos torna também domadores do fogo.
e a humanidade não levou anos aprimorando o controle do fogo pra gente fritar um ovo com a gema dura, farinhenta a clara queimada na borda. eu sou do time da boa comida, de buscar sempre aprender alguma receita nova, de ir aprimorando cada vez mais uma técnica, até chegar na perfeição. aí eu parto para outra receita. quer me ver feliz é comer minha comida com a boca boa. e repetir. eu amo gente boa de prato.
claro que na correria, a gente acaba indo pro mais prático, improvisando um macarrão a carbonara preguiçoso. mas estar de pé em frente a um fogão me coloca em outro estado de ânimo. é quando baixa um santo. nem sempre eu sei o que eu vou fazer, mas quase sempre começa por colocar água para ferver e picar uma cebola. e a coisa vai surgindo aos poucos. quando menos se espera, o que vagava solitário na geladeira vira um banquete. eu tenho muitos defeitos, mas passar fome por não saber me virar não é um deles.
e é incrível como a comida dedura meu humor. se estou feliz, toca fazer algo bem elaborado, com muitos passos, tipo almôndegas, milanesa à parmigiana, coxinha. se estou borocoxô, aí eu faço sopa ou brigadeiro. tem dia que eu preciso me reconectar com minha infância, então eu faço macadame, receita da minha avó. quando bate a saudade da minha mãe eu faço mingau de maizena. e quando a depressão ameaça atacar, eu procuro uma receita de bolo de chocolate. se a tristeza é inevitável, que ao menos fique para um chazinho da tarde.
queria ser da qualidade de gente que planeja cardápio, ter de antemão uma ideia clara do que vou cozinhar, fazer comida para a semana. mas este não sou eu, esta não é a minha vida. para mim, cozinhar é criação e tem que acontecer ali, na hora. é uma comunhão muito íntima, e eu confesso que prefiro que seja solitária. quer me ajudar, zera a pia depois. bota a mesa, me serve um vinho. mas se vai entrar na minha cozinha pra picar verdura de qualquer jeito, com faca de pão, nem vem. se meter nos meus temperos também é procurar confusão que, podendo evitar, eu recomendo.
e mais que cozinhar, eu gosto de alimentar as pessoas. há alguma coisa de entrega a outrem, isso de pensar num prato, conseguir os ingredientes e servir, que me provocam uma satisfação que eu não sei se consigo com outras ações. (minto na cara dura: acredito que escrever tenha algo disso, se for pensar bem). outro prazer é falar sobre comida e preparos. posso passar horas ouvindo alguém falar dos pratos típicos de sua cidade, das receitas de sua família ou o que comia quando criança. comida é identidade.
e claro, eu gosto de ver gente cozinhando. filmes, documentários, reality shows, tudo de gastronomia me atrai. mas hoje eu quero falar de the bear, série do star+. terminei a primeira temporada há uma semana e, fora tudo mais que eu penso, eu só penso em the bear. a segunda temporada estreia amanhã e eu espero que seja tão saborosa quando a primeira. e nada de maratonar num mesmo dia, the bear é pra ir degustando devagar, prestando atenção nas falas e também nas pausas. nos olhos gigantes de cinema mudo do protagonista carmy (jeremy allen white), nos diálogos gritados da cozinha do “the original beef of chicagoland”, cenário principal da série.
pra quem ainda não viu, um resumo: carmy é um chef que vem trabalhando nos melhores restaurantes do mundo e recebendo prêmios internacionais. mas, de um dia para o outro, ele teve que deixar nova york para se mudar para chicago e assumir o comando da popular sanduicheria dirigida por seu irmão mais velho, que morreu inesperadamente, deixando família, amigos e todos que trabalhavam com ele sem palavras.
o melancólico cozinheiro deve, então, lidar não apenas com o luto que ele não consegue expressar, mas o assombra, como também com a desordem avassaladora de uma cozinha caótica e anárquica. bem diferente das cozinhas impolutas e cheias de disciplina e hierarquia a que ele está acostumado. e mais que um restaurante, ele herda um grande abacaxi, o negócio está afogado em dívidas que parecem irrecuperáveis.
a história contempla um cruzamento profundo de histórias pessoais em um cenário sufocante. já no primeiro episódio, a jovem sidney (ayo edobiri <3 ) aparece para trabalhar com carmy e exibe grande capacidade de organização e uma série de projetos (além de diversas neuroses) para levar o negócio adiante. junto com eles, um rico e variado elenco de homens e mulheres que passam os dias entre louças, comidas e fogões. e “passar os dias” aqui é literal. a série mostra como são as pessoas que trabalham nessa indústria e o que se vê é que elas não têm tempo para mais nada. doenças mentais, vícios, violência: tudo isso também é visto em the bear.
mas o tempero secreto, o que dá cor e sabor á série é ver como, mesmo quando os personagens não conseguem se comunicar e trespassar as barreiras que a vida e eles mesmos se impõem, é na comida que eles demonstram afeto. um personagem nunca diz algo amável a outro diretamente, pela maneira que as relações ali se estabeleceram, mas quando cozinham, dão o melhor de si. quando comem algo, se conectam com a história do outro. e quando dizem “isso está delicioso”, é como se pudessem a afagar a alma do outro. eu chorei em mais de um momento desses.
minha mãe foi merendeira por quase 30 anos em escolas públicas de periferia. ela sabia que ás vezes, uma cumbuca de merenda era a única refeição de algumas daquelas crianças por todo o dia. então ela caprichava mais na quantidade para esses alunos. era um segredo entre eles. e às segundas-feiras, depois de dois dias inteiros sem escola, ela chegava antes, preparava um panelão de leite e servia antes da aula. porque de barriga vazia ninguém aprende nada.
eu tenho muito orgulho da minha mãe e da sua história. com ela, nem sempre é fácil conversar e se entender. mas eu sei o quanto ela me ama quando ela me manda uma mensagem “tô congelando pequi, pra quando você vier” ou me recebe com uma mesa cheia do que eu mais amo comer: pamonha, bolo, pão de queijo, canjica, frango caipira com angu de milho e quiabo frito, farofa de jiló com ovo. muita gente me ensinou muita coisa nessa vida, mas foi com minha mãe que eu aprendi que um buchinho cheio leva a um coração contente.
links, links, links!
e já que falei sobre comida nesta edição, deixo como recomendação a série documental street food: america latina. com cada episódio centrado em uma cidade diferente, a série mostra a variedade de boa comida que se pode encontrar em quiosques e pequenos restautantes, conversa com especialistas sobre comida e cultura e conta a história das pessoas que vivem de fazer comida para viver. o episódio de salvador, com a dona susana e sua moqueca é o meu preferido, mas os de lima, oaxaca e bogotá também são emocionantes.
outro lugar pra ficar por hooooras vendo receitas e programas sobre comida é o canal tastemade. as receitas são lindas de ver, práticas, todas as séries são muito bem produzidas e os apresentadores, são muitos simpáticos. e eu sou muito fã do programa liz pede bis, em que a liz experimenta todo tipo de comida.
e pra quem fala espanhol ou está aprendendo e quer bom conteúdo no idioma, o canal paulina cocina é muito bom. comida simples e bem feita, desmistificando o papo de que é preciso ter o dom para se se alimentar. paulina é divertida, tagarela e faz comidas bonitas e muito boas. com ela eu aprendi a fazer uma tortilla de papa melhor que a dos argentinos.
TOP 10
10 ótimos programas sobre culinária
cozinha prática com rita lobo
chef’s table
ugly delicious
street food
cooked
master chef brasil
rainha da cocada
sal, gordura, acidez e calor
tempero de família
alma de cozinheira
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
xu, eu também amo cozinhar, infelizmente tive que me obrigar a ser a pessoa que planeja e cozinha para a semana. então, quando tenho oportunidade de comer algo diferente, quero comer fora e não cozinhar. isso me entristece um pouco, mas quando estou borocoxô ainda faço um bolinho.
esses dias estava comentando com meu irmão que, ao longo da vida, fui percebendo que algumas pessoas comem só pra matar a fome. sabe quando você vai na casa de alguém e percebe que comida ali é secundário? eu não consigo entender hahah digo que sou muito grata por ter crescido com a minha mãe, porque se tiver 2 ingredientes na geladeira, em 15 minutos ela consegue transformá-los numa refeição maravilhosa e nutritiva. tudo que ela faz fica divino, é realmente um dom. ter crescido numa família que ama comer me fez ser como você. é minha linguagem de amor agradar as pessoas com comida.
Que edição mais delícia (trocadilho ruim hahaha)sou muito do time cozinhar como forma de demonstrar afeto. Amigos já estão acostumados a receber bolos porque é aniversário, bolos porque estão triste, bolos porque a vida deve ser comemorada a todo tempo... E concordo com outro ponto: não existe nada melhor do que alimentar quem é bom de prato e curte a mesa farta e a conversa entrelaçada no meio.