casos de família
#54: sobre mães que não suportam certa palavra, irmãos que sonham e avós que inventam fake news do bem
olá, tudo bem?
meu pai sempre foi um homem muito carismático e querido por todo mundo. eu adorava isso nele: as pessoas o chamam de amigo. ele desperta muita confiança e até hoje segue sendo muito educado e gentil com todo mundo. era o que eu queria ser quando crescesse. e mesmo com a gente ele era, dentro do possível de uma figura paterna, presente e divertido.
quase nunca batia nos filhos. o problema era o quase.
ele não explodia. apenas ia guardando, pouco a pouco por meses a fio. nada de sermão, nada de palmada. mas uma vez que chegava no limite, aí não tinha jeito. se ele dissesse “mais tarde a gente vai acertar nossas contas”, acabou, o destino estava selado. e não era só uma surra de cinto. ele colocava a gente sentado, uma fileirinha de três meninos cabisbaixos. abria a bíblia, lia uma passagem. dava um sermão, dizia coisas como “vocês não dão valor no pai e na mãe que tem”. e só então, vinha o castigo físico.
erguia um por um pelo braço e enchia as pernas de cintada, pra ficar marca por semanas. a gente gritava, minha mãe protestava, mas ele seguia firme. eu, como era o mais novo, apanhava menos. não porque fosse uma criança mais comportada, mas porque quando chegava minha vez, ele já estava cansado. e pensa que acaba aí? nananina não.
ele fazia a gente ajoelhar e pedir perdão a deus por ser tão “custosos”. a gente começava a orar baixinho. mas era só ele sair do quarto pra começar o resmungo: “um dia esse velho vai morrer, e eu vou embora dessa casa, ele nunca mais vai bater na gente”. ele não morreu, ainda bem, mas parou de bater na gente, porque quem foi embora daquela casa foi ele.
depois de muito tempo, já adulto, eu entendi que família era isso: alguém que ama e faz tudo pra te proteger, mas que nem sempre vai poder te proteger dele mesmo. eu tenho muito amor pelo meu pai e consigo abraçar suas contradições. mas compreender não implica justificar ou esquecer.
minha avó criou a primeira fake news que eu tive notícia na minha vida.
foi assim: desde sempre na casa dela, ela cozinhava o arroz e o feijão junto. servia com um ovo frito, um tomate picado, uma banana, o que tivesse ali à mão. e sempre dizia que esse prato se chamava macadame, uma receita de família. eu tomei isso como verdade absoluta, que na minha família a gente tinha uma comida especial, uma iguaria que só a gente conhecia. e falava disso pra todo mundo.
até que já adolescente, ouvi alguém dizer “baião de dois” e tive curiosidade pra saber o que era. “tão roubando a receita da minha vó”, foi a primeira coisa que eu pensei. até que soube que ela criou um nome e uma história, pra dar uma enfeitada no prato, simples, improvisado num dia que não tinha dinheiro pra mistura. era um prato de fim de mês, pra socorrer as barrigas vazias de sete filhos órfãos de pai.
“esse aqui é um prato muito especial”, ela dizia, pra ninguém se recusar a comer, e foi assim que muitas gerações provaram o sabor da comida simples, mas cheia de amor. desde então, toda vez que eu cozinho um macadame com ovinho, eu mando pro céu um beijo pra ela, gênia do marketing culinário.
poucas pessoas na minha família tiveram o privilégio de ser chamado pelos nomes com que foram registrados. meus avós maternos encucaram com o sufixo “mar”. seus filhos criaram vulgos para encurtar ou disfarçar. minha mãe ainda teve a sorte de ser chamada de luzimar (luz e mar: por causa dela, meu irmão e eu temos um sol se pondo no mar tatuado no ombro). mas para a família ela é a má, ou mazinha, já que tem menos de 1,60.
minha tia dinamar é só dina; meu tio luizmar, virou bá; meu tio ozimar é zico desde que o galo de quintino era ídolo do flamengo. meu tio jucimar era juca e tio josmar, o caçula era neném. o mais velho, itamar, capaz que por ser o mais sério, nunca teve apelido, era só itamar mesmo.
minha avó paterna se chama izordina e por ser este um nome tão difícil, ela é a dona nega para os amigos e irmã nega para os irmãos de fé. mas pra meus irmãos e eu, ela é a vovó petona. não sei quem inventou, mas até hoje eu só chamo ela assim. meu avô rosalino inventou de colocar seu segundo nome, josé em todos os filhos, inclusive as mulheres. e assim, criou um sobrenome. chegou em luziânia e viu alguém do dedão chato e com josé no nome, pode saber que é meu parente.
meus pais gostavam mesmo era de nomes terminados em son. meu irmão mais velho é gilbson, assim, com um b no meio interrompendo o tráfego das outras letras. pra encurtar, ele mesmo se apelidou de gil e ficou assim mesmo. meu outro irmão, edeílson é dedé desde o dia 1 de sua existência. eu virei wilson júnior porque apareci menino quando todo mundo esperava menina. a sorte que eu dei: se fosse mulher seria gildene (!). e ninguém na família me chama de wilson. pra não confundir com o nome do meu pai. não é um apelido, mas eu só descobri que me chamava wilson na escola.
já minha família por parte de pai sempre usa o nome do pai ou da mãe como parte do nome, quando há chance de haverem homônimos. assim, é comum ouvir um “priscila de tia vilma” ou “miriã de nilson” no meio de uma conversa. eu tenho um primo que se chama edilson júnior. e apesar de que seria muito mais fácil e lógico usarem os dois nomes para diferenciarem, ainda assim somos “júnior de wilson” e “júnior de edim”. ah, claro, tio edilson é tio edim pra todo mundo.
meus dois irmãos mais velhos costumavam brincar de sonhar quando eram garotos. não sei como começou isso, mas era uma brincadeira só deles, que consistia em passar horas inventando como seria a vida deles no futuro. nestes sonhos eles sempre iam ser donos fazendas, caminhonetes, caminhões e cabeças de gado. assim, no plural. nos sonhos deles também apareciam as meninas que eles gostavam. por muito tempo eles sonharam em construir um império ao lado de telma e joelma, nossas vizinhas da vila finsocial. elas nunca deram moral pros dois. não sabem o que perderam.
ás vezes eles me deixavam participar. teve uma vez que eu inventei que a gente ia ser uma banda de música country, ter uma gravadora de discos e ser amigos do chitãozinho e xororó. e que eu iria casar com a sandy, óbvio. eu gostava de sonhar grande, né? a sandy também não sabe o que perdeu.
meu irmão xingava muito quando criança. muitos palavrões mesmo, daqueles cabeludos. mas para minha mãe, o pior era desgra*a. até hoje para ela é a pior coisa que alguém pode dizer, ainda mais dentro de casa. um dia ela disse pro meu irmão que de tanto ele falar, a desgra*a iria aparecer pra ele. não deu outra. uma noite ele se levantou pra fazer xixi e o banheiro era no quintal. qual não foi o espanto do gilzinho de sete anos quando viu uma cabeça monstruosa saindo por cima do muro do vizinho. nunca mais ele falou a tal palavra.
(desculpa se não coloco aqui a palavra sem o *, mas é que até hoje eu não gosto de falar essa palavra, morro de medo de xingar desgra*a e ela aparecer pra mim.)
quando eu era bem pequenininho, tipo uns 4, 5 anos, eu fazia xixi na cama. mas eu tinha uma mania bem feia, eu acordava mijado e ia pra cama dos meus pais. tirava meu pijama e ia meio dormido pro colchão sequinho deles, pra continuar meu sono. minha mãe reclamava, mas ia deixando. só que um dia aconteceu de ter visita em casa. e não sei como era na sua casa, mas na minha, a cama de casal era cedida pras visitas, junto com a melhor roupa de cama.
corta pra minha versão mini despertando ao lado da prima dos meus pais e o marido, sem entender nada. foi uma vergonha tão grande, que ninguém me deixou esquecer por anos a fio. e foi nesse dia que eu parei de fazer xixi na cama.
LINKS, LINKS, LINKS!
pra ficar no tema familiar, eu recomendo muitíssimo aftersun, da diretora charlotte wells. o filme dividiu opiniões entre meus amigos, mas eu amei muito porque ela trabalha memória, solidão, afeto e depressão de uma forma muito leve sem ser superficial. tá no mubi.
estamos vendo the last of us, e mesmo não sendo fã de videogame e zumbis, eu tô achando muito bom. o terceiro episódio é tão bom que eu tô querendo mais, chega logo, domingo! na hbo max.
kaká de polly, drag queen pioneira na arte e importantíssima para a visibilidade lgbtq+, nos deixou na semana passada e pra homenagear, deixo aqui o documentário são paulo em hi-fi, do querido lufe steffen, sobre as histórias das noites gays nas décadas de 1960, 1970 e 1980.
TOP 10
filmes sobre relações familiares (é para chorar)
c.r.a.z.y - loucos de amor
divinos segredos
peixe grande
o filho da noiva
pequena miss sunshine
como nossos pais
capitão fantástico
adeus, lênin
volver
os excêntricos tenembauns
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Amei essa edição, Wilson! Cada história é cheia de afeto.
Tenho uma história parecida com a fakenews da sua avó. As mulheres da minha família fazem canjica com amendoim, porque aprenderam assim com a minha avó. E por causa disso, eu só como canjica feita em casa (ou na casa de algum parente), porque não suporto nem o cheiro da canjica de coco. E eu inventei na minha cabeça que a canjica de amendoim era uma receita de família, uma coisa especial que minha avó inventou e ninguém mais conhecia. Até comentar com amigos virtuais sobre isso e descobrir que alguns deles conheciam canjica de amendoim. E entender que provavelmente nas festas juninas, feiras e outros lugares onde só encontramos canjica de coco, é porque canjica de amendoim dá muito mais trabalho pra fazer (já que tem que torrar o amendoim, descascar e depois bater triturar no liquidificador pra quebrar em pedaços menores). Mas passei boa parte da vida acreditando que só a minha família conhecia canjica de amendoim kkkkkk
Tanta coisa pra comentar que vou acabar deixando alguma história de fora...
Embora eu saiba que levei surra tanto do meu pai quanto da minha mãe na infância, eu me lembro mais de apanhar dela. Talvez por passar mais tempo em casa com a gente (meu pai, professor, lecionava em trocentas escolas nos três turnos durante a semana). Mas a coça era no máximo umas chineladas mesmo - eu nunca, nunca apanhei de cinto. Até uma certa idade, eu e meu irmão mais novo brigávamos muito, o que rendeu até situações engraçadas, como o dia em que eu tava deitado no sofá e ele tacou um DICIONÁRIO AURÉLIO, desses de capa dura, em cima de mim (coisas de casa de professor, haha). Mas logo nos tornamos bem companheirinhos, o que facilitou pros meus pais.
Meu nome não tem nenhuma semelhança de prefixo ou sufixo com os dos meus irmãos, mas é meio que uma herança, já que sou a terceira geração de Emmanuel na família do meu pai (tenho um tio e um tio-avô com esse nome, sem falar no bisavô Manuel). Por isso ninguém na família me chama pelo nome: geralmente é Manelzinho (Manel é o meu tio). Minha vó, filha de espanhol, às vezes me chamava de Manolo, Manolito. Engraçado que Manu é um apelido que nunca tive antes dos 20 e tantos anos, em lugar nenhum. Mas de uns tempos pra cá, um grupo de amigos me chama assim.
Minha vó, aliás, tinha uma lista inconfundível e inesquecível de expressões e xingamentos próprios. Um dia escrevo sobre isso.
Quanto às brincadeiras, eu brincava de banda (de rock) com meus amigos da rua mais chegados, o Rafael e o Junim. Às vezes, incluía também o Jorge Luiz, que a gente chamava de Zé. Teve uma época em que a gente começou a levar a sério mesmo: eu e o Rafael fazíamos as letras, ele e o Junim aprenderam a tocar violão, e a gente montou uma "lateria" (uma bateria feita de latões de tinta) que eu tocava. Durou até eu ir embora de Itaperuna, o marco do fim da minha infância, em abril de 1995. Mas chegamos a gravar coisas em fita cassete, que depois o Rafael recuperou e me mandou.