tempo, tempo, tempo, tempo...
#72 - não há meios de se deter o tempo, prender entre os dedos, fazer com que corra mais rápido ou se demore mais. nós somos feitos de estar, o tempo simplesmente é.
olá, gente!
a foto acima é um dos meus cartões postais preferidos em buenos aires. a torre monumental fica em uma praça muito tranquila e arborizada, que contrasta com a agitação da estação de trem e do terminal de ônibus do retiro, que ficam exatamente ao lado. olhar a torre é ter um minuto de respiro entre o caos das estações e o movimento das avenidas. mas não é por isso que essa foto é a minha preferida, os motivos são bem mais simbólicos. três construções se destacam na paisagem, exatamente no ponto onde eu tirei essa foto.
à esquerda ao fundo, se vê o edifício kavanagh, construído em 1936. à direita, o prédio espelhado da empresa estadunidense we work, inaugurada em buenos aires neste ano*. ao meio, a torre do relógio, propriamente dita. este conjunto é bem simbólico e eu vou explicar por quê. vem comigo!
primeiro, o kavanagh. a história deste, que foi por algum tempo o edifício mais alto da américa latina, é das mais interessantes: conta a lenda que a filha de corina kavanagh, uma nova rica, apaixonou-se pelo filho de mercedes anchorena, uma das aristocratas mais ricas de buenos aires. mas a família do guapo não aprovou o romance e ele aceitou mansamente a decisão. a mágoa pela rejeição foi enorme para os kavanagh e a menina ficou com o coração partido. mas sua mãe esperou pacientemente seu momento: a nova rica ficou ainda mais rica e comprou um terreno na frente da basílica del santo sacramento, que era onde os anchorena enterravam os seus mortos. o palácio dos anchorena ficava de um lado da plaza san martin e a basílica do outro.
corina mandou erguer um arranha céu (31 andares, uma torre de babel na época) para tapar a visão dos rivais. além disso, a basílica está tão perto do prédio que a única maneira de vê-la bem é da passagem chamada… pasaje corina kavanagh . ou seja, a mulher era realmente um alfajor recheado de mágoa, com cobertura de ranço. o edifício impressiona pela aparência, um exemplar da estética racionalista que contrasta com todos os prédios rebuscados com inspiração parisiense de buenos aires. alguns dizem que a história dele foi um pouco aumentada para dar mais charme ao local, mas o kavanagh segue sendo hoje, mais de 80 anos desde sua inauguração, um pilar do que a raiva é capaz de construir.
ali doutro lado da foto, o tijolão de vidro da wework. a empresa que nasceu nos estados unidos é a cara deste século: um conjunto de escritórios para coworking, essa palavra da moda que quer dizer que eles alugam o local para que as pessoas possam trabalhar em seus computadores enquanto tomam um café. é uma dessas empresas que aboliram o dresscode e possuem geladeira de cerveja, parede de escalada, área para churrasqueira, espaço para os pets, e cada um pode determinar seu próprio horário de trabalho (o prédio fica aberto 24 horas).
enfim, uma dessas armadilhas para que os millenials trabalhem muito, enquanto acreditam que estão se divertindo. o nome da empresa deixa isso bem claro, nós trabalhamos. mas, para além dos pormenores da estrutura capitalista da coisa, o prédio tem uma vista linda e apresenta um lado pouco divulgado de buenos aires, que são os edifícios “do futuro”. e é interessante ver que estão, ainda que timidamente, explorando as possibilidade de se reinventar as relações de trabalho.
bem ao centro, entre as tribulações que o passado carrega e as possibilidades que o futuro parece apontar, está a torre monumental, um marco construído pelos ingleses em 1809 em comemoração ao centenário da revolução de maio. era informalmente chamada de torre dos ingleses, mas depois da treta com a inglaterra por conta das ilhas malvinas, esse nome foi abolido. o relógio é um símbolo, ali no meio da paisagem do que é o tempo. dividindo num momento o que é passado do que é futuro. ali, naquela curva chamada presente, que quando você se dá conta, puf! o que vinha já foi.
o relógio é só um símbolo do que é o tempo, porque tempo é matéria sobre a qual mais se debruça e a que menos se compreende. a gente consegue contar o tempo, separar em caixotes suas porções: segundo, minuto, hora, dia, semana, mês, ano, década, século, milênio; a gente é capaz de vender o tempo ( o que é o trabalho senão um tempo que a gente vende?); a gente tem meios de viajar no tempo, para o passado através da lembrança e para o futuro, por meio dos anseios. mas ninguém consegue agarrar o tempo. não há meios de se deter, prender entre os dedos, fazer com que corra mais rápido ou se demore mais. porque nós somos feitos de estar e o tempo, ele simplesmente é.
louvado por caetano veloso como “um dos deuses mais lindos”, o tempo é uma divindade das religiões de matriz africana, na figura de um orixá cujos desígnios determinam o que nasce, e quando nasce, e o que morre, e quando morre. é da natureza de tempo trazer e levar cada estação, fazer o alimento maturar, a cria crescer e os seres humanos se tornarem mais sábios. dizem que tempo nasceu da primeira árvore plantada. em seu louvor há um dito: “tempo dá, tempo tira, tempo passa e a folha vira”. mas essa ideia de que o tempo é um ente sagrado não é uma exclusividade de uma vertente religiosa. todos nós, não importa qual tambor se bata, somos filhos e pais do tempo e em torno dele construímos nossas vidas.
mas acredito que a visão que temos deste deus-tempo tem menos a ver com uma entidade com a qual nos maravilhamos, tal qual caetano na canção, e mais a ver com um deus tirano e implacável que pune quem não obedecer sua lei. todos temos um quinhão de ansiedade pelo que vem e outro tanto de tristeza pelo passado. todos nós pedimos ao tempo para acelerar ou passar devagar em alguns momentos. todos odiamos envelhecer e perseguimos a receita da eterna juventude. e todos nós temos a mania de atribuir a fatores externos (os outros, os astros, deus, o diabo, o tempo) tudo que nos ocorre e que, na maioria dos casos, é fruto de nossas decisões. e é sobre isso que esse texto vai se demorar (demorar mesmo): o que o tempo é capaz e o que ele não é capaz de fazer.
a sabedoria popular possui alguns aforismos como “o tempo é o senhor da razão” ou “só o tempo pode te fazer esquecer um grande amor”, “fulano melhorou com o tempo”, e também “no meu tempo não era assim”, ou ainda “com o tempo, nos tornamos mais sábios”. então, gente, desculpa o que vou dizer, mas, por mais que seja tentador sucumbir ao senso comum, o tempo não funciona assim. a única coisa que o tempo faz por nós é nos tornar mais velhos. de resto, tudo é consequência das nossas escolhas ou decorrência natural de como interagimos com o que nos cerca.
o tempo não é o senhor da razão porque para ele, não interessa quem está em cada lado de cada batalha travada. o tempo passa igual se você chora ou sorri, se perdoa e segue em frente, ou se guarda mágoas no seu coração. uma noite vai durar do mesmo tanto com você dormindo ou rolando na cama, preocupado. e o outro dia vai chegar do mesmo jeito. é certo que algumas coisas demandam mais tempo que outras para se resolverem, mas não é o tempo que age, e sim a maneira que reagimos á sua passagem. o tempo não cura, o que cura é ir em frente e deixar pra trás o que passou.
o tempo não vai te ajudar a esquecer seu grande amor, eu sinto muito. o que ele pode fazer é te ajudar a se lembrar direito, mas você precisa sair dessa sintonia, se voltar para si mesmo, seguir adiante. anos depois você percebe que talvez esteja supervalorizando aquela pessoa que te fez feliz, mas hoje toca em outra banda. ou olha uma foto do seu crush da adolescência e tem uma vergonhazinha. um exemplo melhor: olha quanta gente vivia em relações abusivas e só se deram conta disso muito tempo depois. ainda assim, não foi só o tempo que propiciou essas mudanças de perspectiva, mas as experiências vividas.
o tempo não torna ninguém mais sábio. o que costuma ocorrer é que, com o acúmulo de experiências de vida, as pessoas ficam mais hábeis em errar menos (ou errar melhor), se conhecem mais a fundo, ampliam sua visão do mundo e ficam mais calejadas, assim, escolhem que dores querem levar e quais prefere deixar pelo caminho. mas isso não acontece com todos. alguns se tornam teimosos em hábitos ruins, ficam reféns do “sou assim e estou velho demais pra mudar”, estreitam seus horizontes, carregam consigo o peso de tudo que já sofreu na vida.
sobre o tempo, mais uma surpresa: o passado não era melhor que hoje em todos os aspectos. você se lembra de quando era mais jovem, tinha cabelo, nada de barriga, era cheio de sonhos e tinha tempo pra se divertir. você suspira por isso, olha no espelho e vê o que o tempo fez com você. mas olha só, você contava piadas horríveis e machistas, usava roupa sintética que te deixava com cecê, bebia malt 90 e assistia aqui agora numa tv de 14 polegadas.
tudo tem seu lado bom e seu lado ruim. a diferença é que é no presente que você está. chegamos no ponto onde eu queria: você só pode viver onde você está, por mais saudade que as lembranças do passado te tragam, seu tempo é hoje. as pessoas mais interessantes que existem são as que, mesmo tendo histórias excelentes para contar, não se apegam ao passado.
o tempo por si só não tem o poder de deixar alguém melhor ou pior. nós o fazemos. é bom lembrar que com o tempo, a massa fermenta, o aço corrói e até as montanhas mudam de forma. e o mesmo pode acontecer conosco se deixarmos: rancores podem fermentar, nossa saúde emocional se corroer e nossa paz de espírito ser soterrada por sentimentos acumulados ao longo dos anos. cabe a nós escolhemos como vamos enfrentar o peso de tudo.
para terminar esse gigante texto, gostaria de falar duas coisas sobre o tempo. a primeira é que a idade é só um número. todos os dias eu praguejo esses meninos que nasceram neste século e já estão aí fazendo o mundo rodar. todos os dias eu penso que é uma injustiça eu ter 40 anos já, não sei como isso ocorreu. mas todos os dias eu percebo que não trocaria o que eu sou hoje por quem eu era há 15 anos. todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, como me lembra renato nesse instante.
e outra coisa: você não é velho demais para quase nada na vida. talvez em algum ponto você se dará conta que não faz sentido fazer algumas coisas que fazia, e isso deve ser decorrente de uma evolução, não de idade. se lembre, o tempo passa e vai continuar passando, mas quem conta o tempo em números somos nós, não ele. a idade é só um número, lembra? para um pássaro, talvez você seja velho, mas para montanha você nem nasceu.1
TOP 10
canções sobre o tempo
oração ao tempo - caetano veloso
tempo rei - gilberto gil
resposta ao tempo - nana caymmi
sobre o tempo - pato fu
time after time - cindy lauper
tempo perdido - legião urbana
novo tempo - ivan lins
o tempo não para - cazuza
tempos modernos - lulu santos
seasons of love - rent cast
links, links, links!
uma crônica bonita: godot não virá, da
. ela parte da peça do samuel becket (e uma das minhas preferidas), para falar sobre quando a vida frusta nossas expectativas, e como ás vezes um plano b era o que realmente estava destinado para ser.da tira do papel, newsletter do
, veio esse link, um site onde você pode criar seu próprio barulho de chuva.duas histórias sobre mulheres incríveis que eu não conhecia: no podcast radio novelo apresenta, a primeira repórter do brasil e de portugal, virgínia quaresma. já o podcast dissidentes foi a fundo na biografia de cassandra rios, escritora que teve grande parte de seus livros censurados pela ditadura militar no brasil. seu crime? escrever sobre mulheres que amam mulheres. tá imperdível.
eu tô achando bem massa o trabalho de usar a inteligência artificial para completar paisagens de capas de discos. em alguns casos, a ferramenta parece acertar em cheio, em outras, dá uma viajada. este perfil do instagram chamou minha atenção ao brincar com capas de alguns dos meus álbuns preferidos.
hey, chegou até aqui? pois se gostou ao ponto de ler até o fim, que tal apoiar essa publicação autoral, independente, sem recurso e sem assinaturas? é só chamar na dm . qualquer quantia é bem-vinda, é só pensar quanto você investiria numa assinatura de um conteúdo que você curte. outra forma bacana de ajudar é compartilhar com quem você acha que gostaria de ler meu conteúdo. desde já muito obrigado!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.