soy loco por ti américa
#147 - ao falar seu rincão natal, bad bunny acaba por tocar também em pontos que são comuns a todos os países entre a fronteira do méxico e a patagônia.
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olá vocês!
na canção el apagón, de 2022, bad bunny canta que “todos queren ser latinos, mas falta tempero, bateria e reggaeton”. parece que ser latino está na moda em janeiro de 2025. o álbum DeBÍ TiRAR MáS FOToS1, do mesmo bad bunny, com suas cadeiras de plástico na capa, a série cem anos de solidão, adaptação do clássico de gabriel garcía marquez , os logros pelo mundo de ainda estou aqui e fernanda torres, e por fim o rechaço das pessoas na américa latina ao narcomusical emilia perez são temas de toda rodinha de conversa que eu participo. isso e claro, a política de trump, mas aqui a gente vai falar de coisa boa.
a verdade é que há um sentimento geral, pelo menos por aqui, que a américa latina está na boca do povo. não porque chegamos lá, onde quer que seja esse “lá”, mas porque estamos falando com a nossa gente mesmo, entre os nossos: o filme brasileiro fala sobre a ditadura no brasil e foi feito para que o brasil se veja, o álbum de bad bunny foi produzido apenas com produtores e artistas de porto rico e a série da netflix só saiu do papel porque a família de gabo exigiu uma produção em espanhol, com atores colombianos falando com o sotaque do caribe. tudo isso faz com que quem esteja de fora queira saber, entrar na roda também.
neste contexto. decidi falar um pouco sobre sobre o álbum do artista porto-riquenho. sobre a série da netflix o filme de walter salles e suas três indicações ao oscar eu falarei em outras edições desta newsletter, como uma trilogia. juro de dedinho. por enquanto basta dizer que a américa latina está em peso com o brasil nesta, em parte pelo ineditismo da coisa, em parte pela cizânia que emilia perez provocou. o filme francês se passa no méxico mas não tem mexicanos na produção e apenas uma atriz daquele país no elenco e trata um tema sério, vítimas da violência dos cartéis de droga, de maneira no mínimo leviana.
mas antes de tudo, vamos colocar na mesa o que significa ser latino americano. o dicionário michaellis e a academia real espanhola coincidem no significado:
“latino-americano - la·ti·no-a·me·ri·ca·no (adj) 1 relativo ou pertencente a qualquer nação ou país americano cuja língua oficial é uma das neolatinas. 2 relativo à parte da américa onde se situam esses países. sm natural ou habitante de algum desses países em que se falam línguas neolatinas.”2
logo, pessoas que nasceram e vivem do mais sul da patagônia até a fronteira com os estados unidos são latino americanos.
o termo “américa latina” tem seu primeiro registro na frança, no discurso francisco bilbao, filósofo e político chileno. em seu discurso em uma conferência, ele chamava à união as terras colonizadas por portugal, espanha e frança em oposição à américa anglo-saxônica. aqui cabe um ponto: o termo ignora, pelo menos em sua definição, as milhares de etnias indígenas que vivam e ainda remanescem no continente americano. falar de américa latina é falar também de colonização. mas sabemos que há pelo menos 550 idiomas originários que são falados ainda hoje. no paraguai o guarani é um dos idiomas oficiais do país e a bolívia reconhece 35 idiomas indígenas além do espanhol.
o temo latino, usado para encurtar latino-americano, é usado largamente nos estados unidos para se referir a qualquer cidadão com origem ou ascendência do méxico para baixo e começou a ser usado de maneira pejorativa. é, da parte deles, uma maneira de pasteurizar e aplastrar a identidade de pelo menos 20 países. no passado era comum ver representações de um país com características de outra, como lucille ball vestida de carmem miranda para homenagear o marido cubano, em i love lucy. era o tempo da exploração desenfreada destes países, apelidados de “república das bananas”.
e o brasil, o irmão mais diferente do rolê em tudo, onde entra nessa? a gente é latino e fodido igual, só precisa mesmo começar a prestar atenção à nossa volta. “ah, mas nos estados unidos, os brasileiros não são considerados latinos” foda-se eles, meu irmão. eu vou lá dar moral pra quem nem conhece geografia direito? por mais que existam diferenças, nosso dna é feito de danças, tambores, cores vivas, temperos, frutas, sabores, paisagens, misticismo, culpa cristã, sincretismo, ditaduras, violência estrutural, festas, paganismo, berço indígena, herança africana e vacina bcg no braço.
e claro, um brasileiro reconhece como naturalmente familiar as duas cadeiras de plástico ladeadas em um fundo de quintal onde se pode ver muitas bananeiras. a capa do disco de benito antónio martinez ocasio é simbólica porque ao mesmo tempo em que evoca uma lembrança comum a cidadãos de todo um continente, também tem uma nota melancólica de denúncia política: o que poderia ser um registro familiar se apresenta vazio de pessoas. como uma mensagem de que o porto rico de toda a sua vida pode sumir se não se preservar as memórias e defender o legado cultural da ilha.
o disco evoca nostalgia ao incorporar clássicos da salsa em canções como NUEVAYoL em que trechos da salsa un verano en nueva york, música de 1975 do conjunto el gran combo de puerto rico. é emocionante a trend de avôs reagindo às músicas e dançando salsa no tiktok. e é assim em BAILE INoLVIDABLE e CAFé CON RON. e é importante frisar que as músicas são cantadas e escritas com a pronúncia típica do sotaque borícua: assim, close friends vira KLOuFRENS, vueltita é WELTiTA e verdad passa a ser VeLDÁ.
porto rico é hoje um território não incorporado dos estados unidos. e essa relação de dependência e colonialismo é um dos temas do álbum, na música LO QUE PASÓ A HAWAii que faz referência direta à colonização do havaí e aos processos históricos de exploração de territórios tropicais. o arquipélago conquistado pelos estados unidos em 1900, atualmente um estado daquele país, é quase um grande resort tomado pelo turismo predatório. bunny fala sobre o risco de que isso ocorra também em porto rico.
outro ponto alto do álbum, a música DtMF é a mais viral e a que dá nome ao disco. é uma canção sobre a valorização do presente, a reflexão sobre o passado e a necessidade de aproveitar as oportunidades enquanto temos tempo, em um cenário de festa e celebração da vida, da amizade e da cultura. é uma reflexão profunda sobre o tempo perdido, as memórias e as oportunidades que não foram aproveitadas.
mas para mim, a música mais bonita é LA MuDANZA, em que conta a história de seu pai e seu avô, camioneiros, a história de amor de seus pais, sua família e a relação destas pessoas com a ilha. e depois passa a falar sobre o orgulho de levar a música e a cultura consigo onde quer que vá: “aquí mataron gente por sacar la bandera, por eso es que ahora yo la llevo donde quiera.”
nascido em 1994, bad bunny é dono de grandes feitos na música pop. só para citar um, é o único artista nascido na américa latina a ter 100 músicas que alcançaram o hot 100 da billboard. é um dos maiores artistas latinos da atualidade e apesar de estar entre os mais tocados do continente, ainda não é tão popular no brasil. mas no dia 6 de janeiro, dia de reis, ele deu um passo para chegar também nas rádios tupis, mesmo cantando em espanhol. o segredo? ao falar sobre porto rico, ele acaba por tocar em pontos que são comuns em todos os países entre a fronteira do méxico e a patagônia.
ele também fala sobre nós quando canta “de aquí, nadie me saca, de aquí, yo no me muevo!”
ou como dizemos no brasil, ainda estou aqui.
sobre o mesmo tema
se você gostou de DeBÍ TiRAR MáS FOToS, seguem 3 sugestões de álbuns que você precisa ouvir urgentemente:
buena vista social club - o primeiro e único álbum da agremiação homônima, formada por músicos veteranos de havana, em cuba. o documentário de win wender sobre os músicos velhinhos, cheios de energia e paixão pela salsa também é obrigatório.
duas cidades (baiana system) - conhecido principalmente por fazer críticas sociais em suas músicas ao denunciar temas como racismo, machismo, etc, o grupo baiano traz um som com identidade 100% brasileira. aqui eles usam reggae e pagode, levando esses ritmos a uma superprodução eletrônica para falar de uma salvador dividida pela desigualdade social.
baño maría (catriel y paco amoroso) - primeiro álbum do duo de artistas do trap argentino que têm dado o que falar desde o tiny desk concert deles no ano passado. mesclando pop latino, jazz, house, rock e r&b os jovens criaram um álbum com a juventude e irreverência características e arranjos interessantes e delicados, algo que definitivamente eu não esperava em um álbum de trap argentino.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
nesta newsletter eu escrevo tudo em minúscula, mas para preservar a identidade artística do disco, resolvi preservar o nome das músicas como registradas e publicadas, numa mistura de caixa alta e caixa baixa.
DICIONÁRIO online de português. Dicio. Disponível em: https://www.dicio. com.br/. Acesso em 10 jul. 2020. MICHAELIS. Dicionário brasileiro da Língua portuguesa.
Me encontro totalmente viciada neste álbum novo do Bad Bunny. Desde a primeira ouvida não consigo ouvir outra coisa, é um primor em todos os sentidos e gracias a dios nací en latinoamerica! <3
Não chegaremos lá porque, não sabemos, já chegamos