precisamos falar sobre j.k. rowling?
não. (mas vamos mesmo assim, porque é sobre a vida de mulheres e homens trans que estamos falando aqui.)
olá, gente!
nesta semana joana catarina bolsonaro, autora dos livros de henrique pote cometeu mais uma vez crimes contra a humanidade em seu twitter. pra falar a verdade, ela manifestou apoio a uma conta que tinha sido banida da rede por seu teor aberta e violentamente transfóbico. mas não é somente isso, ela tem repetidamente se manifestado de forma abertamente transfóbica ou apoiado pessoas que o são, desde um like para um tuíte sobre “homens de saia” até um documento totalmente descabido sobre como o ativismo trans está “oferecendo cobertura a predadores”.
aí já nem cabe aqui a batida leréia de liberdade de expressão porque né, puro discurso de ódio. ao militar que vidas de homens e mulheres trans não são válidas, ela acaba perpetuando argumentos que fomentam a violência contra travestis e transexuais.
venho através desta levantar três questãs:
1 - precisamos falar sobre jk rowling? 2 - é possível separar a autora de sua obra? 3 - pessoas que seguem consumindo filmes e livros de harry potter apoiam a transfobia da autora?
as respostas são:
1 - não. (mas vamos mesmo assim, porque é sobre a vida de mulheres e homens trans que estamos falando aqui.)
2 - aí “es todo un tema”, como dizem aqui na argentina.
3 - não necessariamente e aqui eu quero falar um pouco sobre o assunto.
nem queria estar capinando neste terreno, mas como meu namorado foi no cinema ver animais fantásticos e eu, apesar de querer conferir maria fernanda cândido nas gringas, recusei amavelmente. me deu uma fisgadinha de culpa aqui no gargumilo. eu adoro a companhia do victor para qualquer coisa, mas já tem um tempo que eu parei de consumir coisas do universo de harry potter. porque fazer parte estava me fazendo mal. e pensando nisso, decidi tecer aqui um par de opiniões a respeito e, também -se quiserem, claro - ouvir as de vocês. spoiler: não há uma conclusão a respeito.
vem comigo.
PENSANDO
o autor na lixeira, a obra na prateleira
eu amo harry potter. desde sempre. ou pelo menos desde que, no longínquo ano de 2001 saiu uma matéria na veja (eu assinava a veja. era outra época. não é sobre isso, ignore a veja aqui) falando sobre a chegada ao brasil da saga que estava encantando leitores em todo o mundo. parecia muito bom, então quando vi o livro numa livraria comprei. eu tinha 18 anos, e a capa do primeiro volume ainda não tinha o nome do bruxo estilizado com a fonte da warner (ainda não tinha a franquia de filmes, imagina que pra ler cada novo livro da saga a gente tinha que… esperar!).
me lembro de fazer todos os meus amigos lerem, de comprar os volumes seguintes, maiores (e mais caros) em sociedade com um colega de trabalho. já no final da saga, com os filmes sendo lançados e muito mais leitores sendo atingidos, aquele ar de “isso era uma coisa só minha” foi desaparecendo, mas ainda sim tinha muita coisa boa, como quando eu trabalhava numa livraria e tive acesso a harry potter e o enigma do príncipe antes de quase todo mundo, e no dia oficial do lançamento eu já tinha lido mais da metade. coisa de gente jovem.
não há como negar um fenômeno cultural desta envergadura e é louco pensar que saiu tudo da mente de uma só pessoa. jk rowling criou um universo que faz parte do nosso consciente coletivo. gerações se formaram lendo os livros, assistindo aos filmes, debatendo em fóruns e criando fanfics. reconhecendo recortes e guardando proporções, é a saga de ficção mais importante do século 21.
só que tem um grande problema para uma parcela considerável da base de fãs de harry potter: a recorrente e aguerrida cruzada de sua autora, joane katherine rowling contra a existência de pessoas transsexuais no mundo. sim, a mulher fez do terf (trans excludent radical feminism) sua causa, sua bandeira, sua missão. e a cada vez que ela cometia mais um discurso de ódio, mais meu coração doía. até que chegamos ao ponto em que eu renunciei ao personagem e à saga como parte da minha vida.
não dá pra desler os livros ou desassistir aos filmes. não dá pra fingir que não existiram ou negar este legado. só que no presente, eu sinto um incômodo muito grande em fazer parte da base de fãs. em repercutir, assistir, consumir o material. porque para mim, a vida das pessoas trans é mais importante que um apego a um produto cultural da minha juventude.
muito tem se falado em cancelar a saga, já que a autora, a esta altura já está mais que cancelada. só que esse é um debate muito mais profundo porque abarca não somente as pessoas trans, lgbtqia+ e aliados, como também fãs da saga que não estão muito por dentro da coisa; gente que diz que tá tudo bem, é só separar o autor da obra; e uma meia dúzia de damares que nem gostava da mulher, mas agora, meu deus, é um ícone da liberdade de opinião. enfim.
dá pra separar a autora e suas opiniões dos livros de fantasia que criou? sim e não. sim, considerando que o universo do bruxo é uma obra de ficção que não retrata a realidade. porém, infelizmente não porque 1: toda obra, mesmo ficcional é um retrato do contexto em que foi escrita. 2 - a própria autora está todo o tempo agregando novos significados e explicando alegorias presente em suas obras, como quando tuitou que dumbledore é um homem gay ou quando disse que os lobisomens na saga eram uma alegoria para pessoas hiv positivas vivendo com estigmas em uma sociedade preconceituosa. (curiosamente, há personagens na saga que deliberadamente “contaminam” outros, os transformando em lobisomens, o que será que ela quis dizer com isso? hmmmm)
eu sinto que, separar o autor da obra aqui, neste ínterim específico, é apenas fechar os olhos para não ver, não só as atitudes da autora em na vida real, mas também fingir que a obra, apesar de ser infantil não tem uma importante carga política (para o bem e para o mal). a mesma jk que ensinou uma geração de adolescentes a se rebelarem contra o fascismo e nos presenteou com o ícone feminista hermione, é também a mulher que batiza um personagem negro com um termo racista e faz referencias antissemitas em algumas passagens.
e se a saga pode ser lida como uma luta de pessoas para serem livres em ser como são, em que a diversidade é mais importante que a norma, em que garotas são tão alentadas a terem ser potencial descoberto quanto garotos, que a união pode derrubar sistemas, desafiar tirando e combater golpes há algo errado aqui; se tudo isso é verdade, então como ficam os leitores lgbtqia+ que tiveram nas páginas um abrigo do medo e da solidão? como ficam leitores que aprenderam que tudo bem não fazer parte do “mundo normal”? é como se esses leitores tivessem sido traídos.
bom, então chegamos a um ponto sem volta onde temos, de um lado, um legado grande e real de um produto cultural amado por milhões de pessoas em todo o mundo e cultuado com nostalgia. e do outro lado, uma pessoa pública bilionária, usando uma plataforma de enorme alcance para dizer a milhões de pessoas que uma parcela grande da população não merece existir como existe e contribuindo com a violência, a marginalidade e o abandono destas pessoas.
para mim, não há como voltar atrás e fingir que tá tudo bem. da mesma maneira que foi muito triste entender o racismo que permeou vida e obra de monteiro lobato. não dá mais pra consumir do mesmo jeito. assim é como eu entendo e como decido o que eu quero consumir. mas isto é bem subjetivo. no caso do monteiro lobato, avisos que contextualizam, discutem e explicam os trechos racistas é um caminho. mas não é o único, afinal ele não é o único autor infantil que existe e há muitas outras narrativas que podem encantar e formar novos leitores.
no caso da jk rowling é um pouco mais complicado, porque ela está viva e também porque, tal qual regina duarte, ela não se ajuda nem um pouco. mas pergunta honesta aqui: o que estamos perdendo de verdade deixando de consumir a obra da autora? não é como se não houvessem livros de fantasia para jovens e adultos aos montões por aí. porque existem. e obras que dialogam com o mundo aqui fora, que possuem apresentam personagens diversas e exploram outras vivências. que tão poderosa é uma memória afetiva que nos prende a um único universo? não há vida fora de hogwarts?
dois pontos a poderar aqui. primeiro, não é culpa do fã que a autora seja transfóbica e, mesmo que seria muito legal que todo mundo tivesse uma visão crítica e política sobre o tema, mas ninguém é obrigado. não julgar quem toma escolhas diferentes das suas é um passo enorme pra construir pontes. desde que a pessoa não corrobore com as ideias da autora, curtir a obra vai da consciência de cada um. deixar de consumir a obra da jk rowling deve ser uma decisão pessoal, intransferível e política.
segundo, muita gente defende que deixar de consumir seria deixar de ~~~dar dinheiro~~ para a autora. tá brincando, né? a mulher está bilionária, não há nenhuma quantia no mundo que faça diferença para ela. “ah, mas se ninguém consumir o estúdio para de produzir e as editoras de lançar livros.” mas a saga já foi concluida, não há nada relevante sobre harry potter a ser lançado a não ser variações do mesmo produto. é um lastro gigante e irrefreável. tanto que a mulher não tá se esforçando em ser legal, porque nada vai acontecer com ela.
outra galera falando pra ver os filmes piratas em vez de pagar um ingresso ou assinar um streaming. pra mim dá no mesmo. deixar de consumir é antes de tudo, ter senso crítico, entender o problema e ver que dá pra viver sem, porque o mundo é muito grande e cheio de opções. a saga de harry potter é certamente maior que a própria autora e definitivamente maior que a militância virtual. não é uma questão de números, mas é de empatia. pelo que tenho visto é mais fácil empatizar por personagens de ficção em um universo de fantasia que por pessoas trans que veja só, existem de verdade.
ps: é mais fácil deixar de consumir quando pararam de fazer filmes bons, né? victor saiu do cinema e me disse que o novo animais fantásticos é uma bela bosta. eu avisei, né?
outros pontos pra pensar
o thiago ora, uma das pessoas mais inteligentes da internet, fala sobre jk rowling, separar o artista da obra, morte do autor e um monte de outras coisas neste vídeo aqui.
e nessa matéria aqui, do tangerina, o christian gonzatti sugere hackear a obra de jk rowling, se apropriar dela à revelia da autora. como na ilustração acima, do artista @damianimated. é um ponto de vista interessante.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book pela amazon.
Olha só, minha mãe também leu essa revista Veja e foi assim que eu ganhei HP de aniversário, haha (de 10 ou 11 anos, acho, essa mesma edição). Eu li toda a saga na infância/adolescência, mas perdi o bonde dos fãs, eu não tinha internet e morava longe de tudo, então não tive essa experiência. Sinto carinho pela memória afetiva, sabe, principalmente de descobrir a leitura, mas pra mim sempre foi uma porta pra outras coisas. Hoje em dia eu leio sobre a autora e me bate uma tristeza, mas não é como se os livros fizessem parte da minha vida ainda, hoje eles são só uma memória boa mesmo. Decidi que não vou reler, nem ver mais filmes e é isso. Concordo com você em tudo, acho que a gente precisa ter senso crítico sim, ainda mais porque vivemos numa sociedade de consumo e, querendo ou não, consumir é endossar a mensagem.