o silvio santos é coisa nossa
#127: contemplar as falhas e virtudes de senor abravanel nos dá a oportunidade de abraçar o complexo que existe em nós
olá vocês
morreu sílvio santos e, vivendo fora, talvez eu tenha vivido este luto em uma proporção menor do que, eu imagino, tenha sido para quem está no brasil. o fato da tv globo dedicar quase toda a programação do fim de semana ao maior nome da emissora concorrente diz muito do quanto este momento foi e está sendo marcante na história da televisão. sem ver pela tv, eu apenas acompanhei por alto pelo xuíter e por isso, parece que a ficha ainda não caiu muito bem.
estou triste, mas só ontem deu para ler algumas homenagens, obituários, ver cortes da cobertura e pensar no que representa a morte do homem que foi o maior comunicador do brasil durante as minhas quatro décadas de vida. eu sempre tive a impressão de que sílvio era eterno, sobretudo porque ao longo dos anos ele mudou muito pouco de sua aparência. só nos últimos anos é que deixou de ostentar o inconfundível tom acajú by jassa no cabelo (ou peruca, como nos revelou a pequena maisa).
era aquele homem alto, de voz grave, dicção e entonação que fazia a festa de imitadores e humoristas e aquele microfone chumbado no peito. era para as famílias do brasil, a minha incluída, a personificação do domingo. se eu separar qualquer domingo da minha infância, é grande a chance dele ter sido acompanhado de uma macarronada com frango, horas seguidas de programa silvio santos, ir á igreja e na volta ver as pegadinhas do topa tudo por dinheiro.
sílvio não era grande apenas por ser um empresário que se fez do zero e seguiu comandando seus negócios com sorriso e lábia de vendedor. mas porque sabia se comunicar com as pessoas. foi o primeiro, e acho que único, apresentador a se colocar ao lado da platéia, assim quem via televisão via o público, não somente as atrações do palco. fora a criatividade infinita para criar bordões que hoje são parte da cultura popular. até a onomatopéia da risada era uma marca registrada: “rá ráee”. duvido que você não tenha lido com som.
o empresário vivia de ter idéias, imaginar coisas que depois se tornavam reais, por mais absurdas que parecessem ao princípio. um programa de casais paquerando por binóculos e depois dançando uma valsa. um quadro em que uma pessoa contava seu maior sonho e esperava arduamente que uma cortina se abrisse para ver se seria possível ou não realizar. uma versão brasileira de uma novela argentina chamada pícara sonhadora, apenas porque o nome parecia sonoro e intrigante. uma grande gincana de quem afundava um prego com menos marteladas.
apesar de já estar fora do ar já há uns anos, parece que agora se confirma o inevitável: a televisão que eu cresci assistindo não existe mais. porque a maquininha de fazer doido, sobretudo o sbt, era povoada de pessoas que além de serem famosas, tinham um pé na excentricidade, no camp, na cafonice, na malícia e na inocência, tudo junto e misturado. o mundo melhorou muito em termos de inclusão e respeito, não há como pensar em voltar atrás. mas não vou ser hipócrita, para mim os anos 80 e 90 foram mais divertidos e absurdos.
pedro de lara, aracy de almeida, vovó mafalda, hebe, elke maravilha, bozo, sílvio santos, essa gente toda era mais que só famosa, eram grandes personalidades, meio folclóricas até. na tv brasileira de hoje acho que só a ana maria braga alcançou esse status. o resto é tudo posado, brifado, limpinho demais, tudo muito bonito, mas sem o caos que nos formou. fora as digital ‘influenza’ e as garotas abravanepo, com o carisma de um cotovelo, tentando fazer o barro acontecer.
voltando ao ss, nos últimos dias houve quem sentiu muito, quem louvou o homem como um santo e até quem decidiu que era de bom tom sair por aí listando somente os defeitos do finado, como episódios de machismo, racismo e muitos outros ismos infelizes. sílvio santos foi bom e grande em muitos aspectos e mau e pequeno em alguns outros, isto é fato e negar isto é não ser justo com a sua biografia.
entendo quem acredita que todos esses momentos desabonadores devem ser lembrados e quem prefere ignorar, mas tratar como se fosse uma questão binária, ou isto ou aquilo, me parece uma maneira rasa de descrever alguém complexo. a biografia de silvio santos é cheia de altos e baixos. e por se tratar de uma figura tão famosa e icônica da cultura brasileira, parece que seus altos são maiores e que seus baixos são os piores que alguém já pôde alcançar.
eu estava há muitos anos sem ver nada do sílvio santos porque parecia que cada vez mais ele dava sinais de que havia estacionado no tempo. e é uma pena, porque olhando em retrospecto, ele criou muita coisa que se tornou modelo de como fazer tv. no passado, ele era um homem do futuro. mas aí o futuro chegou e ele se tornou um homem do passado, com idéias conservadoras e piadas ultrapassadas. mas o que está feito e dito não pode ser desfeito e desdito.
mais que um ídolo, senor abravanel era um ser humano e contemplar suas falhas e virtudes nos dá a oportunidade de abraçar o contraditório que existe em todos nós, que também erramos feio e acertamos bonito, mas longe dos holofotes. que sílvio santos eu vou levar na lembrança? o que dava espaço para travestis e transformistas na tvou o que adulava ditadores? o que criou programas divertidos que moldaram meu caráter ou o que fez piada com o cabelo de uma criança negra? os dois, porque ninguém se sustenta sendo só metade.
mesmo para a ala mais progressista, acadêmica anti tv aberta, entender a importância e o apelo de ícones extremamente populares faz mais pelo povo que escrever um textão somente para a bolha intelectual já convertida. o mano brown cantou essa bola em 2018 e ela tá aí quicando até hoje. sílvio santos é um reflexo da sociedade brasileira, para o bem e para o mal, e negar sua importância na história em conta de episódios lamentáveis não vai diminuir seu legado nos lares do povo brasileiro.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Concordo, Ju. Mesmo não tendo sido uma telespectadora do canal (minha mãe só deixava a gente assistir TV Cultura e por tempo limitado) consigo entender a importância de Sílvio Santos para muitas famílias e as inovações que ele trouxe no âmbito da TV aberta. Fora que tem notícias pessoas de que ele era um empregador justo e que ajudava bastante os funcionários, dava liberdade para os apresentadores (no doc de Jô Soares tem falando sobre ele e o apoio que deu quando Jô foi demitido da Globo). Enfim, essa forma de enxergar o mundo em preto e branco é um horror. Um beijo.
não há como negar a importância de silvio santos para a televisão brasileira, gostamos dele ou não. sua partida marca o fim de uma era, afinal, é enorme a quantidade de brasileiros - como nós - que não conheceu a tv sem silvio santos. quando nascemos, ele já estava lá. e seguiu por muitas décadas. agora, o sbt vai precisar se reinventar para sobreviver.