o canto do trabalhador
#138 - é fácil ser contra a abolição da escala 6x1 quando se vive no futuro e se beneficia do trabalho exaustivo de quem mal tem direito a um presente digno
olá vocês!
você sabia que a universidade de oxford é mais antiga que a civilização asteca?1 e que cleópatra viveu em uma era mais próxima do iphone que da construção da grande piramide de gizé?2 e por falar nisto, sabia que as últimas espécies de mamutes caminhavam pela terra quando a pirâmide de gizé já existia?3 e que a frança ainda estava guilhotinando gente quando star wars foi lançada no cinema?4 e que fernanda montenegro e anne frank nasceram no mesmo ano?56
eu sempre fico biruleibe das ideias quando leio essas listas de fatos curiosos sobre nossa percepção do tempo. porque a gente meio que assimila o tempo linear, com toda a humanidade caminhando junta, e que a história é feita de caixinhas separadas, fecha uma era pra só depois abrir outra. mas a gente precisa lembrar que enquanto há gente usando carros que se dirigem sozinhos, também tem gente que precisa caminhar muitas léguas para chegar até um ponto de ônibus para ir ao trabalho.
existe uma teoria, que eu adoro, a de que o desenho os flintstones não se passa na pré-história, mas em um futuro pós-apocaliptico. depois de um desastre nuclear, os seres humanos tiveram que começar do zero com o que tinham em mãos. isso explica a existência de tecnologias parecidas com as atuais, como carros, tvs, etc. essas pequenas aldeias sobreviveriam em contato com animais que evoluíram, como um cachorro-dinossauro, por exemplo.
mas o grande ponto dessa teoria é que os flintsones existem no mesmo espaço-tempo que seus colegas de estúdio hanna-barbera, os jetsons. os supersônicos jetsons vivem em cidades flutuantes e com acesso a tudo de mais tecnológico que existe nesta utopia. porque eles estavam entre os privilegiados que puderam fugir para colônias no espaço. enquanto isso, fred, vilma e companhia vivem uma distopia justamente porque não tiveram os mesmos acessos.
no desenho, não fica claro qual é a profissão de george jetson, mas sabemos que ele trabalha duas horas por semana apertando os botões de um super computador. já fred e barney, nós sabemos muito bem, trabalham como operários em pedreiras o dia todo. bom, é só uma teoria de desenho animado, mas vocês entenderam onde quero chegar não? viver no passado ou no futuro é uma questão de quais privilégios uma pessoa teve acesso em sua vida.
trazendo para a vida real, 200 anos antes de cristo, o império romano já tinha instalado em toda a cidade de roma um sofisticado sistema de distribuição de água e recolhimento de dejetos. dois milênios e dois séculos depois, já era para todo mundo ter água tratada e esgoto, certo? errado. segundo dados de 2021 do instituto trata brasil, só no país existem 100 milhões de pessoas sem acesso aos dois serviços.
é a desigualdade social que define quem é que vai ao trabalho de helicóptero e quem passa todos os dias quatro horas do dia se deslocando para chegar ao trabalho. e quanto ganha quem produz e quem se beneficia de verdade dessa produção. logo, não é difícil entender que os que mais sofrem são os trabalhadores, mal remunerados, precarizados e tendo que trabalhar 8 horas por dia, 6 dias por semana, fora o tempo de transporte.
por isto eu me estresso tanto com gente dando espaço pra playboy falar merda sobre uma realidade que ele não vive e jamais vai viver. a jornada de trabalho 6x1 prejudica a saúde e o bem-estar dos trabalhadores, pois impõe longas horas de expediente e uma rotina exaustiva e compromete tanto o equilíbrio físico e mental quanto o tempo livre e as relações sociais e familiares.
aos 16 anos, eu trabalhava como empacotador em um supermercado, das 14h às 22h (ou até o último cliente ir embora), e depois, pegava três ônibus para voltar para casa. chegava depois da meia noite, jantava, dormia e no dia seguinte acordava cedo para a escola. nestes anos perdi tempo de estudo, sono adequado, lazer e momentos importantes com minha família. porque uma jornada como esta essa jornada fere direitos fundamentais, limitando o acesso ao descanso, lazer, educação e convivência social.
é fácil ser contra a abolição da escala 6x1 quando se vive no futuro e se beneficia do trabalho exaustivo de quem mal tem direito a um presente digno. os argumentos de que isso vai gerar um prejuízo muito grande no bolso do patrão que, coitadinho, vai ter que demitir e fechar as portas em vez é a mesma falácia desde o século 19, quando diziam que libertar pessoas escravizadas seria péssimo para a economia do país. e é o mesmo lenga-lenga de 1962, quando o principal jornal do país disse que o décimo terceiro salário era desastroso para o brasil.
a proposta formal, como está sendo discutida, veio do vereador carioca rick azevedo e chegou ao congresso pelas mãos da deputada erika hilton (mãe!). e até aqui vem ganhando adesões do centro e até de alguns sujeitos de extrema-direita. mas é uma luta que deve ir além das casas legislativas e ganhar o coro de quem realmente tem vivência no assunto, o trabalhador brasileiro.
a pec atingiu o numero de assinaturas necessárias para que possa tramitar e agora começa a discussão de verdade. e aí é que entra você, eu e todo mundo. pra começar, não é uma pauta da dona maria hipotética, ela afeta a imensa maioria da população brasileira. nossas mães e pais, professores, amigos, colegas, irmãos de fé, todo mundo já sofreu ou sofre os efeitos de uma jornada de trabalho extenuante. mesmo que de maneira indireta, como o filho que não pode estar mais tempo com os pais, por exemplo.
mesmo quem trabalha 5x1, como eu e alguns de vocês. porque a gente não “chegou lá”. a gente tá cada dia mais longe de quem está neste “lá”. e pra gente poder estar num modelo de trabalho um pouco menos opressor, muita gente teve que ralar e não ter direito aos dois dias do fim de semana. então a gente é parte dessa corrente. vamos difundir os benefícios dessa conquista pra todo o nosso entorno. fazer com que pegue mal, que seja mal visto quem é contra o projeto.
e vamos lembrar todo dia que, se hoje o trabalhador pode trabalhar seis dias e folgar um, é porque em algum momento o patrão foi proibido de fazê-lo trabalhar sete dias seguidos. que já houve escravidão, nenhum direito trabalhista, e todos os direitos foram conquistados com muita luta e união. então chegou a hora de colocar a jornada 6x1 no passado e avançar para um futuro a cada dia um pouco mais justo. vai ser engraçado dizer daqui a um tempo: “você sabia que quando aboliram a escala 6x1 de trabalho o carro autônomo já existia?”.
em tempo, sobre o tema abordado aqui, o orlando calheiros escreveu um texto excelente em sua newsletter:
e o título desta edição veio da música canto das três raças, de mauro duarte e paulo césar pinheiro e eternizada na voz de clara nunes:
“ e ecoa noite e dia
é ensurdecedor
ai, mas que agonia
o canto do trabalhador
este canto que devia
ser um canto de alegria
soa apenas como um soluçar de dor.”
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
“não se sabe ao certo o ano em que a universidade de oxford foi fundada, mas há evidências de que ela lecionava por volta de 1096. os astecas começaram a se organizar como povo em torno do século 13.”
“cleópatra morreu há pouco mais de 2.000 anos, em 30 a.c., enquanto a grande pirâmide de gizé foi concluída por volta de 2560 a.c. é uma diferença de mais de 2.500 anos.”
“a pirâmide tinha aproximadamente 1.000 anos quando os mamutes foram completamente extintos, o que ocorreu por volta de 1560 a.c.”
“a execução final por guilhotina na França ocorreu em 1977, quando um homem chamado hamida djandoubi foi executado por torturar e matar sua namorada. foi o mesmo ano em que o primeiro filme star wars chegou aos cinemas.”
fernandona nasceu no dia 15 de outubro e a refugiada judia nasceu em 12 de junho, ambas em 1929.
Muito bom! Estamos na mesma sintonia, esta semana escrevi sobre o Burnout e o 6X1 aqui no substack. Abraço.
Que construção de raciocínio primorosa! Bj