nem medo, nem esperança
#87: quem a gente pensa que é pra dar uma opinião assim cheia das certezas sobre assuntos que a gente 1 - não sabe nada, 2 - se informou por alto?
oi vocês!
no último sábado assisti tengo miedo torero, baseado no romance de mesmo nome de pedro lemembel. a história se passa em 1986, no chile, no meio de uma das ditaduras mais carniceiras das que provou a américa do sul. um homem efeminado e um guerrilheiro intelectual se fazem amigos e entre eles nasce um afeto. carlos, o comunista, usa o desejo do amigo, conhecido somente como “la loca del frente” para fazer reuniões clandestinas e esconder armas em seu apartamento.
la loca é uma pessoa solitária e se vê perdidamente apaixonada por carlos, que a vê com ternura, mas também com interesse para a sua causa. ou seja, para ele, a vida de um homossexual é importante, mas sua ideologia é ainda mais. la loca, que tampouco é valorizada pela sociedade, entende isso e em determinado momento diz algo que me fez pensar muito: “cuando tu revolución incluya a las locas, me avisas... ahí estaré yo en primera fila”1.
ando nos últimos tempos com um travor amargo na garganta. um retrogosto, mistura de mal estar com mal humor. a votação na câmara de deputados sobre o casamento homoafetivo baixou à terra a sensação de que nós não valemos muita coisa, coletiva e individualmente. tem uma música da gal que diz “não tenho medo, nem esperança”. a sensação é precisamente essa, eu só tenho um enorme cansaço.
primeiro, o primeiro. o casamento entre pessoas do mesmo sexo não foi proibido no brasil. ainda não. infelizmente, não há uma lei que regulamente a união civil homoafetiva no brasil. por outro lado, não há o que revogar. o que assegura este direito é o entendimento do judiciário de que a constituição em si não faz esta distinção, logo ele deve se estender a todas as pessoas. com base nisso, os cartórios são obrigados a oficiar o casamento. ou seja, qualquer outra tentativa de revogação é inconstitucional.
o que aconteceu foi o seguinte: em 2007, o deputado clodovil hernandes, sim, aquele clodovil, apresentou um projeto que regulamentaria, para fins de divisão de bens, a união entre dois homens ou duas mulheres. o projeto foi sendo sempre protelado e cada vez que alguém pegava a matéria para revisar, fazia uma alteração. e o que começou com “olha só, essas pessoas passam a vida inteira juntas e terminam sem direito a nada” chegou para ser votado como “são relações que não são naturais e não têm o propósito de procriar, logo deveriam ser proibidas”. da hora a vida, né?
o projeto, votado agora pela comissão da previdência, assistência social, infância, adolescência e família (uff que nome comprido) passou adiante basicamente porque deputados da base evangélica viram ali uma oportunidade de gerar um barulho. é muito mais uma manobra eleitoreira que um exercício de fé. eles atacam um inimigo invisível (a ideologia de gênero) pra defender algo abstrato (a família) porque sabem que não vai dar em nada. e no fim podem dizer que tão fazendo alguma coisa, sem efetivamente fazer coisa nenhuma.
esses 12 deputados e deputadas que votaram a favor da proibição mudariam de idéia sobre qualquer coisa, se vissem nisto alguma vantagem. então nem embarco nessa nóia de “os crente tão querendo acabar com a minha vida”. no brasil nada é assim tão simples e todos os buracos são sempre mais embaixo. logo, logo o projeto esbarra em outras comissões mais tranquilas, como a de direitos humanos e c’est fini. e mesmo que, eventualmente fosse aprovado, o supremo teria o poder de embargar, porque, mais uma vez, é inconstitucional.
se tem gente muito foda e preparada para o combate (erika hilton <3) envolvida e a salvaguarda judicial, por que então o gosto amargo? porque enquanto isso, uma mulher lésbica, militante de direita se matou depois de tentar mudar seus desejos em uma igreja que pregava uma “cura” para sua homossexualidade. uma pessoa deixou de viver porque tem gente eleita cujo plano pra se manter em evidência é pregar que uma pessoa homossexual não merece amor nem de si mesma.
porque enquanto isso também, uma ala progressista da minha bolha, gente que eu admiro e alguns a quem eu amo, tava mais empenhada em repercutir que o filho mais novo do bolsonaro é gay. ao que parece ele tinha uma relação com outro moço e um jornalista tão abjeto quanto o clã tirou ele do armário à força.
a ultima coisa que eu quero ver num jornal sobre a família bolsonaro é fofoca sobre a vida sexual de um deles. ainda mais quando direitos adquiridos com tanta luta são debatidos como se a gente nem humano fosse. com tantos crimes nas costas da familícia, a galera vai fazer chacota porque o rapaz é gay, sabe? a homofobia recreativa da esquerda, não falha nunca. no fim quando é pra ir pra arena lutar por algo nosso, aí é só a gente pela gente mesmo.
a revolução só inclui las locas quando é coveniente. quando não, o desconstruído de telão vai achar 8 mil desculpas para deixar escorrer seus preconceito, de “é só um meme” a “ah, mas é o filho do bolsonaro”. quero ver renan bolsonaro na cadeia, mas não quero ver sua vida exposta dessa maneira. no que difere quem faz piada com renan do valentão que chamava os outros de mariquinha na escola?
li um tuíte de um ser iluminado desses que dizia que é irônico um homem homofóbico ter um filho gay. bom, uma grande parcela da população lgbtqia+, eu incluído, tem pais homofóbicos. não tem nada de irônico nisso. “ah, assim ele aprende a não ser hipócrita”. ter um filho gay não é um castigo, nem uma redenção, nem coisa nenhuma. ter um filho homossexual deveria ser somente isso: “tenho um filho, e ah, ele é gay.” mas agem como se houvesse uma justiça divina nisso, quando na verdade, viver em um lar onde não se é acolhido é uma das coisas mais tristes do mundo.
outro tema que me faz morrer assim devagarzinho, um pouquinho a cada dia dessa semana foi o clima de fla-flu que virou o conflito na faixa de gaza. tenho família, amigos e conhecidos cristãos e sei que existe a crença de que israel é o “povo escolhido” e por isso deve prevalecer sobre outras nações. e como disse, vivo numa bolha progressista que entende que o estado de israel oprime a população palestina e logo, deve ser exterminado. eu confesso que quando penso na questão, a primeira coisa que vem a minha cabeça é “quem sou eu pra ter opinião?”.
não é se eximir de ter uma posição (embora ela não seja necessária ou obrigatória). mas sério mesmo: quem a gente pensa que é pra dar uma opinião assim cheia das certezas sobre assuntos que a gente 1 - não sabe nada, 2 - se informou bem por alto?vou além: que direito o cleyton de anápolis e a rosana de maringá têm para tomar partido numa guerra lá longe, como se tivesse assistindo um jogo do brasileirão?
porque eu vi com meus próprios olhos mais de um story celebrando, comemorando, fazendo uhuuu porque israel foi atacado. veja bem, 500 civis morreram num ataque horrível, mas o militante de rede social acha justo, porque o governo de israel é feio, malvado e sujo. do outro lado, ouvi uns “graças a deus” quando houve retaliação, porque o deus tá do lado certo, logo quem tá do outro lado tem mais é que morrer. aleluia, glória a deus. quando é que a gente parou de ver humanos em um conflito e começou a ver bonequinhos num videogame? sei lá, quando se comemora mortes, acho que uma linha de humanidade foi cruzada. nenhuma ideia vale uma vida.
e sejamos sinceros: a gente se dá muita importância, né? em menor grau, o que muda na natureza dos fatos opiniões do tipo “sou contra”? ser contra o aborto não resolve o problema de mulheres morrendo em clínicas clandestinas. ser contra o “casamento gay” não apaga que casais do mesmo sexo existem e formam famílias. ser contra o estado de israel não soluciona um problema complexo de décadas inteiras. “israel não deveria existir” pois é, mas já existe, então ficar batendo numa mesma techa não ajuda em nada. já que vai abrir a boca pra opinar, traz algo original para a discussão, por favor.
tenho uma colega de trabalho judia, que viveu em israel por muitos anos. alguns de seus amigos estão desaparecidos desde o dia dos ataques. é dolorido de ver. em que melhoraria sua angústia ler um post de “israel genocida”? nossa indignação de 15 segundos não vai salvar nenhuma criança palestina de morrer nas fronteiras, não vai trazer paz a nenhuma mãe judia que chora a falta do filho. com todo respeito, a gente tá longe pra caralho e tem muitos problemas no próprio quintal para resolver.
mudando de assunto
eu tô vendo pantanal finalmente, já que chegou aqui pelo streaming da paramount plus. e entendi o sucesso, há tempos eu não via uma novela com tanto gosto. acordo falando “ara!” e vou dormir sonhando com juma, muda, filó, o velho do rio. meu núcleo preferido é o do josé leôncio com o filho jove, que não se entendem em nada, mas se amam muito e querem muito tentar resolver essas diferenças. novela rural me dá muita saudade do meu pai. e dá vontade de tentar me tentar me entender com ele, apesar de saber que não tem muito jeito.
eu não sou fã da taylor swift, mas vejo tudo que se relaciona a ela e seus fãs com um misto de curiosidade e fascínio. dia desses tava vendo uma entrevista com a escritora argentina mariana enriquez e do nada ela usa a canção right where you left me da taylor para explicar o romance o deslumbramento, de marguerite duras. se isso não faz alguém respeitar o tamanho que taylor ocupa na cultura popular hoje, não sei o que faria.
“quem você levaria para uma ilha deserta?” era uma das perguntas que não faltavam no caderno de perguntas que a gente respondia quando era adolescente. lembram? pra quem não viveu os anos 80 e 90, era assim: alguém criava um caderno, uma pergunta por página e as pessoas iam respondendo embaixo. as perguntas iam de “qual seu maior sonho?” até “com quem foi seu primeiro beijo?”, até a famigerada pergunta sobre quem você tiraria da sociedade para te fazer companhia no hipotético caso de você ter que ir para uma ilha com zero densidade demográfica. a gente devia estar muito dopado de a lagoa azul na sessão da tarde pra achar romântica a idéia de ter que conviver somente com uma pessoa, isolados da civilização para o resto da vida. enfim, hoje essa idéia me dá calafrios.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
“quando a sua revolução incluir as bichas me avise, eu vou estar nas primeiras fileiras” em livre tradução.
No fundo as pessoas só querem performar em redes sociais. Paladinos da moral, como se a vida funcional fosse esse paraíso idílico. Me vejo nesse mesmo cansaço. O mal estar é global.
Que legal! Amo Lemebel. Todo su obra es increible e intensa