não seria legal?
#164 - brian wilson e uma canção sobre amor, espera e impossibilidades e por que ela segue falando tão fundo aos nossos corações até hoje
olá vocês!
brian wilson morreu na semana passada, aos 81 anos. e eu não sei como explicar a sensação de perda por alguém que parecia, ao mesmo tempo, tão distante e tão íntimo. brian não era só a mente por trás da banda the beach boys, ele era um tipo raro de artista, desses que escutam o mundo com outros ouvidos, dos que parecem ouvir as cores, que traduzem vozes internas em melodias que atravessam gerações e que transformam dor em harmonia.
pra muita gente, the beach boys é sinônimo de surf, calor californiano e juventude bronzeada. mas brian nunca foi bem esse cara. ele era o mais velho dos três irmãos wilson, tinha um ouvido absoluto e uma sensibilidade fora do comum. enquanto o resto da banda seguia em turnê, ele se recolhia nos estúdios de los angeles, gravando jams com soutros músicos e inventando paisagens sonoras que ninguém tinha escutado antes. o auge desse processo é pet sounds, de 1966.
esse álbum é um romance de formação em forma de disco. pet sounds não só mudou o rumo da música pop como revelou um brian vulnerável, melancólico, intenso. nele, brian se despede da adolescência e mergulha naquilo que nos torna humanos: a insegurança, a solidão, o desejo de ser compreendido. e é justamente por isso que, entre todas as faixas, wouldn’t it be nice ocupa um lugar tão delicado. se você, como eu só descobre as músicas certas pelos meios tortos, é a música tema de como se fosse a primeira vez, aquela que o adam sandler canta no barco, aos prantos.
a canção abre o álbum com um coral alegre e quase infantil. de início, parece mais uma música sobre namorados que querem morar juntos. mas logo fica claro que há uma tensão ali, um conflito entre o que se sente e o que se pode viver. a letra diz: “não seria legal se a gente fosse mais velho? então não precisaríamos esperar tanto.” e o que poderia ser só uma reclamação adolescente vira, de repente, um manifesto sutil, um desejo de liberdade.
segundo o letrista tony asher, a música é sobre “a frustração da juventude, de saber o que se quer, mas precisar esperar”. brian, com 23 anos na época, transformou esse sentimento em melodia e fez isso com um perfeccionismo que beirava a obsessão. de acordo com a far out magazine1, a gravação da faixa teve pelo menos 21 takes instrumentais. foi feita em 22 de janeiro de 1966, no lendário gold star studios, com acordeões, guitarras dobradas e uma instrumentação orquestral que desafiava os padrões do pop. brian queria algo “místico”, algo que flutuasse. e conseguiu, a música é irresistível.
mas o mais lindo da canção não está nos arranjos, ou não somente neles. está no que ela provoca. wouldn’t it be nice fala de um amor que ainda não pode ser vivido. de uma vida que ainda não chegou. e talvez por isso ela tenha sido adotada, anos depois, como símbolo emocional por tantas pessoas da comunidade lgbtquiap+. e a história de como esta música passou de um universo a outro é das mais emocionantes.
desde os anos 70, a tira doonesbury, de garry trudeau, era publicada com o personagem título em situaçõs que satirizavam a vida corporativa e a vida nos grandes centros urbanos. em seu entorno, orbitavam outros personagens, entre eles, andy lippincott, um homem abertamente gay. os editores chiavam, mas gary seguiu com andy na tirinha. em 1989, o personagem passou a viver com aids. no ano seguinte uma cena emocionante colocou brian, os beach boys e a canção de amor frustrado no cenário da historinha.
os fãs de dooneysbure2 acompanharam as lutas de andy, culminando na morte do amado personagem em 1990, ano em que pet sounds foi lançado pela primeira vez em cd. andy pega o álbum e o toca várias vezes, até finalmente falecer cantando as primeiras palavras da primeira faixa wouldn't it be nice. ele morre ali, sozinho, enquanto a canção toca e o que era antes um sonho juvenil vira, naquele contexto, um sussurro de luto. um retrato de tudo que não se viveu.
a pergunta “não seria legal?” passa a significar muito mais: não seria legal viver sem medo? amar sem se esconder? envelhecer ao lado de quem se ama? mais de trinta anos depois, uma tiktoker chamada rosie marie redescobriu essa cena e a compartilhou num vídeo que viralizou. sua leitura sensível resgatou a carga queer da canção e emocionou milhares de pessoas.3
Enable 3rd party cookies or use another browser
se hoje, apesar da onda conservadora que atravessamos, nós podemos, de alguma maneira, beijar em público, andar de mão dada, falar alto “eu te amo”, houve quem passasse uma vida inteira de amores nas sombras, medrosos, incofessos. para gays, lésbicas e pessoas trans das gerações antes de mim (eu nasci em 1982), o afeto chegou escondido, negociado, adiado. wouldn’t it be nice não diz isso com todas as letras, mas está lá. naquela frase dita como quem suspira:
“baby, then there wouldn't be a single thing we couldn't do
we could be married (we could be married)
and then we'd be happy (and then we'd be happy)
wouldn't it be nice?”4
e é por isso que eu ouço essa música com uma lágrima no canto do olho. porque ela fala de mim, fala de nós. e porque brian e tony, talvez sem querer, construiram um abrigo dentro de uma canção de amor cheia de esperança e juventude.
brian era esse tipo de gênio. frágil, isolado, às vezes perdido, mas capaz de criar beleza suficiente para acolher o mundo. e mesmo que tenha passado anos lidando com saúde mental, abuso e silêncios, brian deixou uma obra que segue viva porque continua dizendo verdades. não seria legal, brian, viver num mundo que compreendesse melhor pessoas como você? não seria legal se os andys da vida real não tivessem morrido sozinhos, esperando por um amor que nunca lhes foi permitido?
não seria legal se a gente não precisasse mais desejar esse futuro porque ele já tivesse chegado? a arte não muda o passado. mas pode consolar o presente e inspirar o amanhã. e enquanto existir alguém ouvindo wouldn’t it be nice com o coração cheio de esperança, brian seguirá por aqui.
tem músicas que a gente ouve. e tem músicas que ouvem a gente de volta.
por hojé é só, mas se vocês gostaram e quiserem colaborar com esta publicação, considerem assinar a versão paga da news. também pode mandar um pix para jornalistajunuiorbueno@gmail.com.
e se você quiser deixar um recado só pra mim, com sugestão, pergunta, críticas ou elogios, acesse o formulário e dá um oi. alguns dos textos que escrevo vêm de idéias postadas lá.
júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
em livre tradução: “amor, então não haveria nada que não pudéssemos fazer, poderíamos nos casar e então seríamos felizes. não seria legal?”
Confesso que desconhecia o significado que "Wouldn't it be nice" ganhou para tanta gente, o que engrandece ainda mais a canção.
Beach Boys e Brian Wilson entraram na minha vida demasiado tarde. A tempo, no entanto, de ganharem um lugar especial nas minhas memórias. "Pet Sounds" tocou em repeat no carro enquanto percorríamos, eu e minha família, 2700 Km por Angola, em 2015. Tornou-se, por isso, a banda sonora de dias felizes, de reencontro, em que nos aventurámos por estradas incertas até chegar tão a sul quanto conseguimos, já bem dentro do deserto do Namibe.
Um ano depois haveria de ouvir, emocionado, "You still believe in me" no Parque da Cidade do Porto, onde Brian Wilson celebrou os 50 anos de "Pet Sounds". Acabava de sair de um abismo do qual Angola e a minha família me salvou, ganhando por isso significado especial para mim.
Tocou-me também a morte de Brian Wilson, como me tocou a sua vida, a sua arte, o seu génio. É isso que que guardarei para sempre...
A primeira vez que ouvi essa música e esse disco eu chorei tanto.
É lindo!