meu império romano
#162: um dia os patinadores de supermercado estavam lá, rodando gloriosos entre as gôndolas, e no outro, puf!, sumiram. e talvez a culpa seja nossa.
olá vocês!
meus cinco ou seis leitores são os melhores. veja você que há um par de semanas eu publiquei aqui um texto sobre memórias de infância e falei que um dos meus sonhos de criança era virar um patinador do carrefour quando crescesse. porque eu me lembro muito bem, quase vividamente, o fascínio que esses rapazes e moças me despertavam percorrendo os corredores para trocar algum produto, conferir os preços, buscar mercadoria, trocar dinheiro entre os caixas. eles faziam tudo e com tanta graça que me parecia uma carreira promissora a aspirar no futuro. aí recebi um comentário que fez um airbnb na minha cabeça.
o pedro, leitor desta news escreveu o seguinte:
“não sei se foi truque da minha memória, ou se era isso mesmo, mas os patinadores do supermercado tinham uma aura, pareciam seres celestiais. mas eu havia apagado isso totalmente das minhas lembranças, agora sobra um lapso, um espaço em branco entre a época em que existiam patinadores de supermercado e a época atual em que não existem mais. eu queria só lembrar quando foi que pararam de existir, pra ter um marco temporal, tipo o famoso antes e depois de cristo ou o pré-pandemia.”
e esse é hoje o meu império romano: de hora em hora eu me pego perdido no que foi feito dos patinadores de supermercado. já joguei no google e nada: ou são postagens de fóruns, com lembranças dos patinadores seguido de um “que fim levaram?” ou então é alguém dizendo que sim, ainda existem alguns supermercados que contam com o trabalho de patinadores auxiliando na linha dos caixas. mas sem vídeo nem foto. e eu trabalho com imagens.
até no oráculo de delfos moderno, conhecido como tiktok eu fui buscar uma resposta e nada. acredite em mim, no ano da graça de 2025, o que não existe no tiktok, não existe fora dele de nenhuma maneira. de modo que fui até no mais recôndito da minha memória tentar achar mais detalhes. fato é que um dia eles estavam lá, rodando gloriosos entre as gôndolas e no outro, sumiram. e talvez a culpa seja nossa.
pode ter sido uma daquelas mentiras sinceras que a infância conta pra si mesma, mas eu juro que os patinadores do supermercado eram como seres de outro plano. deslizavam entre as prateleiras com a leveza de quem nunca ouviu falar em lombar. desviavam de crianças, empilhavam bandejas de peito de frango e ainda acenavam com um sorrisinho digno de comercial de margarina. eram ágeis, imperturbáveis, quase mitológicos. como centauros modernos, mas com uniforme e crachá.
não houve despedida. nenhum anúncio oficial, nenhum boletim extraordinário: “atenção, clientes, informamos que os patinadores foram extintos por corte de orçamento e excesso de graça”. nada. só um silêncio entre as gôndolas e um barulho solitário de carrinho com roda torta. o mais intrigante é que eu nem percebi o sumiço na época. só agora, adulto, é que me dei conta. tipo quando você vê uma foto sua com franja em 2004 e pensa: “ué, quando foi que isso aconteceu?”
esse é o mistério: não sabemos quando os patinadores deixaram de existir. parece que a gente cresceu, começou a se preocupar com os preços das coisas, e pronto - eles evaporaram. no começo da década de 90 eles estavam lá e uns anos depois, quando eu comecei a trabalhar (justamente em um supermercado, veja você) ninguém nem falava sobre. assim como o pedro, eu queria muito ter um marco temporal, algo como “antes dos patinadores / depois dos patinadores”. igual a gente fala pré-pandemia, seleção brasileira pré-7 a 1, criatividade pré-chat gpt. qualquer coisa que explicasse esse vácuo na linha do tempo.
mas o pedro trouxe uma teoria - na verdade, uma esperança - na segunda parte do comentário:
“veja bem a teoria agora: só as crianças são capazes de ver os patinadores de supermercado. então, não há nenhum espaço entre, ou o momento em que deixaram de existir. a gente só cresceu e por algum motivo, como não nos tornamos um deles, apenas deixamos de vê-los. ou você nunca viu, depois de adulto, nenhuma criança no supermercado olhando hipnotizada para o vazio movente?”
faz sentido. você nunca reparou numa criança parada, com os olhos fixos no corredor, como se assistisse a um balé invisível? pois é, ela viu. isso explicaria também que algumas pessoas jurem de pé junto que alguns supermercado ainda tenham patinadores, mas ninguém me traga imagens para provar. eles não aparecem assim do nada, tem que acreditar, tem que ter o coração ainda não despedaçado pelo aumento do preço do nescau.
e se o pedro estiver certo, então o que a gente chama de “sumiço” é, na verdade, um filtro. um daqueles que o tempo vai aplicando sobre o mundo. aos poucos, a gente deixa de ver o que é leve. o que flutua. o que parece mentira, mas é só poesia com rodinhas. talvez os patinadores nunca tenham desaparecido. talvez só as crianças vejam. talvez eles estejam lá até hoje, deslizando entre os detergentes e os pacotes de bisnaguinha, visíveis apenas para quem ainda acredita que o chão do supermercado pode ser uma pista de dança sagrada.
se bem que, ano passado eu tava andando pelos corredores do coto de abasto, meio distraído e juro que vi um borrão de alguém que passou voando. com um carrinho vazio e um movimento tão fluido que me deu um calafrio. olhou pra mim, sorriu. não aquele sorriso simpático-padrão, mas um que dizia: “você se lembra.” e então sumiu na curva do corredor, como se fosse coisa da minha cabeça cansada de fazer conta para decidir qual desinfetante levar.
pode ter sido só um funcionário eficiente. ou um adulto de tênis com rodinhas, vai saber. ou um anjo das promoções. mas eu prefiro acreditar que era um deles. eu sei que já está tarde para mim, com joelhos ferrados e a cordenação motora de um javali bêbado. mas em algum lugar, alguma criança ainda pode se atrever a sonhar. a acreditar que a mágica não acaba, só troca de roupa. que o mundo ainda guarda deslizes bonitos. e que, mesmo depois de crescido, se você olhar direito, com carinho e com fome (de poesia ou de pão de queijo), ainda pode ver um deles passando, rápido, preciso, quase imperceptível, bem ali, entre o corredor dos congelados e o das memórias.
ps: a imagem que ilustra este texto é da comédia construindo uma carreira, de 1991, dirigido pelo john hughes, em que os protagonistas, vividos por frank whaley e jennifer connely decidem realizar meu sonho e infância e saem patinando em um supermercado vazio. filmão, está disponível para alugar no youtube.
e já que falamos sobre isso, não posso deixar de desenterrar esta pérola: glória menezes arrasando nos patins (era uma dublê, mas quem liga?) na vinheta de fim de ano da globo em 1992.
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júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
Adorei! Muito boa a ideia dos filtros que a gente vai perdendo. Me lembrou a Annie Ernaux em "Olhe as luzes, meu amor", um livro todinho em que ela fica observando o supermercado que sempre frequentou, e como ele conta uma história também.
Amigo, que texto lindo. Amei essa possibilidade. Lembro muito desses patinadores. Eles voavam pelos corredores e sempre felizes. Hahahaha
Mas quebrando um pouco a fantasia, acho que eles devem ter sumido por questões trabalhistas (acúmulo de função, risco de acidente ou acidentes de fato por ausência de uso de EPI, vários b.os).
Um beijo.