a nossa velha infância
#158: por alguns segundos, ela escancara a porta da sala, senta no meu colo e me pede um copo de toddy com muito mais pó que leite.
olá vocês!
quando eu era criança, eu sonhava em ser três coisas quando crescesse: motorista de trator, patinador do carrefour e escritor. eu não sabia bem o que cada profissão envolvia, só sabia que todas exigiam alguma forma de movimento. o patinador, com sua coreografia de freios e sacolas, era o artista das compras. eu adorava quando a gente ia fazer compras e de repente passavam aqueles rapazes rápidos e seguros prontos pra resolver qualquer problema. o trator era força bruta e passeio no barro, era máquina imensa obedecendo ao menor de todos.
e escrever… escrever parecia dirigir palavras.
o tempo passou e eu desisti de ser motorista de trator. e nunca aprendi a patinar. só ficou o sonho de um dia ser colega do ziraldo, do maurício de souza e da ruth rocha. eu colecionava palavras difíceis num caderno. anotava “inexorável”, “efêmero”, “alvíssaras”, sem saber exatamente o que significavam, só porque soavam importantes. e tentava usá-las em frases com a família. todo mundo me zoava por isso.
me zoavam também por não falar grosso e não ir brincar na rua, como os meus irmão. a verdade é que eu tentava. mas toda vez que eu ia, me machucava. as minhas cicatrizes até parecem marcas de uma infância endiabrada. quem dera fosse assim. são marcas de um garoto totalmente inapto para chutar uma bola, empinar uma pipa, correr do pique bobo, descer uma ladeira em um carrinho de rolimã sem ralar o joelho.
o caçula dos bueno era mesmo um bicho estranho, olherudo, sem assunto, não sabia fazer outra coisa que não ler, um livro atrás de outro. meus recreios eram na biblioteca, reinações, só as da narizinho. e quando aprendi a assobiar, senti que tinha ganhado um superpoder. passava dias inteiros soltando notas desafinadas como quem descobre a linguagem dos pássaros. meu mundo silencioso por fora, mas por dentro era barulho, movimento e pequenas vitórias.
nessa época, eu também tinha medo de muita coisa. do escuro, que parecia guardar todos os monstros que a luz expulsava. dos palhaços, que não sorriam com os olhos.
e do diabo. não o teológico, mas o das radionovelas policiais que minha mãe escutava na rádio am enquanto arrumava a casa e fazia o almoço. a vinheta gritava “satanás visita goiânia!!!” com tanto terror que eu tinha certeza de que o capeta morava no rádio.
da infância em goiânia, lembro dos telhados quentes e das tardes lentas. do guaraná baré de tutti-frutti, um sabor que parecia vindo de marte. lembro das festas de aniversário, bolo quadrado coberto de glacê e anilina,
com passinho sincronizado . das idas pra luziânia nas férias e a casa da avó virando república de primos. da febre dos brinquedos do paraguai, do meu brick game, que eu jurava que se chamava “brinque game” e da bicicleta, promessa paterna de recompensa por bom comportamento, mas que nunca foi cumprida. hoje sei que sobrou vontade e faltou condição na carteira do velho.
as lembranças de uma infância de muitas mudanças, de quando fomos morar em uma chácara com córrego passando no fundo do quintal. de ter porcos e galinhas como animais de estimação. e da tristeza que dava quando os amigos viravam almoço. mas nada foi tão triste quanto a mudança para uma cidade pequena, mozarlândia. meu pai recebeu uma proposta de trabalho e lá fomos nós, os cinco mudar de vida. depois de um ano, voltamos só quatro: meu pai arranjou outra mulher e se desfalcou a banda.
mas houve também as tristezas coletivas, minha e de uma geração de moleques:
a morte do senna, que fez o país chorar num domingo, parecia errado ver o galvão falar com tristeza na voz. anos depois, também num domingo, os mamonas assassinas, foram embora tão rápido quanto chegaram. tudo isso foi parte da infância e do susto de crescer. mas também teve a maior alegria coletiva que eu me lembro: a de ver o brasil ser tetra.
os anos 90 foram uma colcha de retalhos entre a inocência e o exagero: a tv colosso, o castelo rá-tim-bum, o carrosel mexicano, o mundo de beakman, os cavaleiros do zodíaco. as novelas, com vilãs de nome composto: branca letícia, maria altiva, paola bracho. os tazos no salgadinho, os mamíferos de pelúcia da parmalat, o realzinho das bolachas mabel. tiazinha, feiticeira, carla perez e as moças da banheira do gugu. e eu sem poder acreditar nos sonhos molhados que tinha com o marcelo faria, o ralado de quatro por quatro.
quando eu era criança, eu acreditava que o futuro morava no ano 2000, e que no ano 2000 tudo seria prateado, flutuante e cheiroso.
mas o futuro veio com fila no banco, dor na lombar e grupo de whatsapp da família.mesmo assim, às vezes ele ainda vem como antes: numa tarde preguiçosa, num cochilo de domingo, num sonho com cheiro de roupa recém-passada.
e aí, por alguns segundos, a infância escancara a porta da sala, senta no meu colo e me pede um copo de toddy com muito mais pó que leite.
e eu dou.
porque sonhar ainda é de graça.
porque memória é brinquedo velho que ainda funciona.
porque dentro da gente ainda mora aquele menino patinador, deslizando entre gôndolas, distribuindo sonhos no corredor das ofertas — mesmo que ninguém mais peça.
eu nunca aprendi a dirigir um trator, nem sei se ainda existem patinadores de supermercado.
mas aqui estou eu, escrevendo essas lembranças.
newsleteraço!
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ps: enquanto você lê este texto, eu estarei me mudando de volta para o brasil. então é por essa razão que na semana que vem não teremos nosso encontro. mas na semana seguinte, no dia 13 de maio, eu volto. até lá, você pode ir no arquivo da newsletter, ler ou reler um dos mais de 150 textos já publicados. e também pode apoiar este escritor assinando a news na modalidade paga, por apenas 10 reais por mês ou 100 reais por um ano. e pode também compartilhar, mandar para os amigos, comentar e dar um like. qualquer maneira de amor vale a pena.
Não sei se foi truque da minha memória, ou se era isso mesmo, mas os patinadores do supermercado tinham uma áurea, pareciam seres celestiais. Mas eu havia apagado isso totalmente das minhas lembranças, agora sobra um lapso, um espaço em branco entre a época em que existiam patinadores de supermercado e a época atual em que não existem mais. Eu queria só lembrar quando foi que pararam de existir, pra ter um marco temporal, tipo o famoso antes e depois de Cristo ou o pré-pandemia. Ou, veja bem a teoria agora: só as crianças são capazes de ver os patinadores de supermercado. Então, não há nenhum espaço entre, ou o momento em que deixaram de existir. A gente só cresceu e por algum motivo, como não nos tornamos um deles, apenas deixamos de vê-los. Ou você nunca viu, depois de adulto, nenhuma criança no supermercado olhando hipnotizada para o vazio movente?
Que texto mais lindo Júnior!!! Voltei lá na minha infância, onde queria ser jornalista igual Glória Maria viajando o mundo, escrevia e lia muito, porém nem cogitava a existência da pessoa por trás daquelas palavras....