macaquinhos no sótão
#108: obrigado ziraldo, olhando para trás, eu acho que, assim como o menino maluquinho, eu fui um menino feliz.
olá vocês.
morreu ziraldo, a quem eu chamava carinhosamente de “o velhinho maluquinho”. ele sempre teve essa mesma cara de vovô desde quando eu era criança, nos anos 80 e me deparei com sua obra-prima e um dos meus livros preferidos da vida, o menino maluquinho. a cabeleira branca, um coletinho colorido e o sorriso estampado na cara. é engraçado quando morre algo que sempre existiu, pelo menos para mim. se bem, que a considerar o legado que ele deixa, não sei se morrer é o verbo adequado.
me lembro da primeira vez que li o meninino maluquinho. eu ainda estava juntando as letras, minha tia dina me acompanhava, a cada página. e me explicava as coisas que eu não entendia. “tia, o que é macaquinhos no sótão”, eu perguntava, e ela dizia “é uma maneira de dizer que ele tinha pensamentos bem malucos”. “e o que significa ter o olho maior que a barriga?”, e ela: “é querer comer sem ter fome, comer mais do que cabe na barriga”.
eu acho muito bom quando um autor de livros para crianças não as trata como se fossem tontas. com ziraldo não tinha tatibitati, ele usava palavras que sabia que iam aguçar a curiosidade dos pequenos leitores e não se furtava em tocar em temas que poderiam parecer maduros demais. o menino maluquinho fala de pais separados, não como um tabu, mas como parte da história do personagem.
a princípio parece que o personagem principal é uma criança excêntrica, endiabrada, carente de atenção. se fosse hoje certamente já teriam diagnosticado o guri como hiperativo ou com tdah. mas ao passar de páginas, o que percebemos é que o menino na verdade viveu o que toda criança deveria viver, uma infância saudável. maluquinho aqui é só a força de expressão. ele era um menino feliz, como explica o final do livro.
eu poderia fazer um texto inteiro sobre o livro do menino de camiseta amarela e panela na cabeça, tão importante para a minha infância, como imagino que para a de muitos de vocês. mas veja você, quando o livro foi lançado em 1981, ele já era um homem realizado e tinha percorrido muito chão em um tanto de áreas artísticas que é difícil até contar. mas importante relembrar.
na década de 1960, ziraldo ganhou reconhecimento com o lançamento de a turma do pererê, a primeira revista em quadrinhos nacional feita por um único autor. em 1969, se juntou a outros jornalistas e cartunistas, como Jaguar, Henfil e Millôr Fernandes, para fundar o periódico o pasquim, que desafiava o severo ai-5, durante a ditadura militar brasileira. um marco importante no jornalismo brasileiro, a publicação era era conhecida por sua forte crítica ao regime, o que resultou na prisão de quase toda a equipe, incluindo o próprio ziraldo, detido três vezes.
também em 1969 ele escreveu e ilustrou o primeiro livro para crianças já nasceu um clássico: flicts. atemporal, a história narra a busca por um cor que não se encaixa em nenhum lugar até que por fim encontra seu lugar no mundo. flicts, pererê e o maluquinho são só algumas de suas criações mais conhecidas, mas ele também é pai do hilário bichinho da maçã, da menina nina, do menino marrom e da professora muito maluquinha, entre outros.
também fez história nas revistas, com uma página fixa na playboy, com o personagem mineirinho, e na cláudia, com a supermãe. e pensa que é só isso? tem o traço dele nos logotipos da telerj e do psol e em um dúzia de mascotes de times de futebol. sem contar os filmes e série do menino maluquinho, o programa de tv abz do ziraldo (quem lembra?) e as célebres e divertidas entrevistas dele no jô, cada uma mais engraçada que a outra.
sem dúvidas a grande marca do ziraldo foi se comunicar com as crianças de igual para igual. ao lado de maurício de souza, ruth rocha e alguns outros, ele despertou em mim um grande amor pela leitura e pelo poder da imaginação. e os livros me salvaram muitas vezes. tenho inveja de quem pôde dizer a ele pessoalmente coisas assim, eu só posso agradecer em pensamento e imaginar o carma bom que ele conquistou descrevendo os meninos e meninas do brasil em suas histórias.
muitas vezes eu fui aquele menino de vento nos pés, pernas tão grandes que dava para abraçar o mundo e querendo inventar o sol em dias de chuva. nem sempre a infância é tão doce como deveria ser, e a minha não foi nenhum morango, mas a companhia dos livros me salvaram muitas vezes de momentos tristes ou solitários. obrigado ziraldo, olhando para trás, eu acho que, assim como o menino maluquinho, eu fui um menino feliz.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
"É engraçado quando morre algo que sempre existiu, pelo menos para mim." - Sensação muito presente nos últimos tempos. O Menino do Ziraldo marcou demais minha vida também. Lembra do Vovô Passarinho? :)
Linda homenagem, Junior! Ainda bem que tivemos a companhia de suas obras na nossa infância ❤️ Ele foi mesmo um artista incrível!