eu não sou daqui, marinheiro só
#155 - "de dónde sos?" me perguntam desconhecidos pela rua. de onde eu sou afinal, eu fico matutando.
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olá vocês!
há quase oito anos uma pergunta me persegue: “de dónde sos?”. no caixa da padaria, nos táxis, no restaurante, gente aleatória no ônibus, e até mesmo - e isso aconteceu há uma semana - na fila de um brinquedo num parque de diversões. e há oito anos, toda vez que alguém me pergunta de onde eu sou, eu já sei onde a conversa vai parar. respondo, sem hesitação que sou do brasil, e já emendo com “mas já moro aqui há tantos anos”. e quase como se fosse um teatrinho armado entre mim e este perfeito desconhecido, a pessoa inclina um pouco a cabeça, sorri com um certo orgulho da própria percepção e me devolve: “noté por la tonada diferente que tienes.”
e eu fico ali, na ponta da frase alheia, segurando uma informação que já era minha desde sempre. a conversa morre aí. a pessoa não me pergunta mais nada, não quer saber de que parte do brasil eu venho, se eu gosto de buenos aires, o que carrego na bagagem dos anos que já somei por aqui. só queria dizer isso mesmo: que percebeu algo diferente. que identificou a tal “tonada”. eu me pergunto o que esperam que eu faça com essa constatação. agradeço? confirmo, como se estivesse revelando um segredo guardado? dou um abraço e saio distribuindo pontos de fidelidade por escutar minha cadência brasileira entre os sons rioplatenses?
não faço nada. só fico ali, às vezes sorrio por educação, e por dentro sigo pensando: e daí? tem vezes que eu fico meio impaciente e penso “que bom que percebeu, parabéns pelo ouvido absoluto. quer um troféu agora ou mando entregar em domicílio?” e às vezes eu fico meio puto (mas só por dentro, eu jamais faria feiúra, porque minha mãe me deu educação). dá vontade de responder “yo soy de lacon”. e a pessoa iria perguntar “la con?” e eu ia dizer “de la concha de tu hermana, hijo de re mil putas”. mas eu só sorrio mesmo.
mas tem uma variante. às vezes, depois da identificação sonora, a pessoa até se arrisca a começar um bate-papo. “ah, brasil, que liiiiindo, tan hermosas las playas” e então dá pra brincar de bingo mental: a pessoa vai soltar um búzios, um arraial d’ajuda, ou um florianópolis, este último com o complemento triunfal: “bombas y bombiñas!” — quase como se fosse um verso da poesia nacional. e claro, o clássico dos clássicos: “las mujeres son hermosas”, "qué rica la caipiriña".
é nessa hora que eu costumo estragar um pouco a festa e digo, com a calma de quem já viu esse filme várias vezes: “pois é, mas eu sou do meio do continente, viu? de goiânia. na verdade, estando aqui em buenos aires, a gente tá mais perto de uma praia brasileira do que eu estava na minha cidade natal.” aí o brilho no olho do meu interlocutor começa a se apagar. a centelha da empolgação vacila. o assunto míngua, se esvai no ar como bolha de sabão estourada antes de tempo. porque no fundo, me parece, ele não queria saber. queria apenas contar que sabia.
interrompendo este texto para te contar que quando você digita “disfraz de brasileño” (fantasia de brasileiro) no google, aparece algo assim:
talvez seja implicância minha, admito. pode ser que eu esteja falhando em reconhecer ali um gesto genuíno de aproximação. quem sabe exista mesmo uma linguagem do amor que eu desconhecia: a arte de inquirir alguém de outro país a troco de nada, apenas pelo prazer da constatação. de onde eu sou, ele pergunta. de onde eu sou afinal, eu fico matutando.
eu sou do brasil, de goiânia, pra ser mais preciso. do bairro da vila nova, na maternidade são josé. sou de uma infância com gosto de picolé de milho verde, de asfalto quente, de chuva que vem grossa e repentina e faz a terra ter o melhor cheiro do mundo. fui criado no centro do país, longe do mar, seco de recursos, mas com uma sede imensa de mundo. e foi essa sede que me trouxe até aqui.
mas eu sou da argentina também, uai. meu dni diz que sou cidadão residente. eu sou das filas do supermercado dia, com o cartão de desconto sempre na carteira. dos corredores da farmacity, do cartão sube carregado de viagens para o trabalho, para os cafés de esquina, para a casa dos amigos. sou das contas pagas em pesos, dos impostos discutidos em cada conversa de bar, do casamento celebrado nesta terra que, gostando ou não, me acolheu e também me moldou.
a verdade é que a pergunta — “de onde você é?” — já não tem uma resposta simples. ela escorrega da geografia para algo mais profundo, mais íntimo. porque eu sou do brasil, claro, e disso me orgulho. faço questão, inclusive, de manter o sotaque. não pretendo camuflar minha origem nem na pronúncia nem nas atitudes. mas eu também sou daqui. sou dessa buenos aires, onde eu descobri que sou mais forte que jamais pensei que precisaria ser, onde me conheci melhor e me apaixonei pela pessoa que me tornei. aqui também eu conheci e me apaixonei por este país, que se explica tanto nas suas dores quanto na sua paixão pelas pequenas alegrias.
e, se quiserem ampliar a pergunta, eu sou da américa latina inteira. dessa terra cheia de sotaques que se misturam, que se reconhecem mais pela emoção do que pela precisão linguística. então, toda vez que me dizem que perceberam a “tonada” diferente na minha fala, eu até entendo a intenção. talvez seja uma forma de aproximação, um jeito de tocar na diferença sem dizer muito. mas confesso que fico com vontade de responder: “sim, tem uma melodia na minha fala. é a canção que carrego de tudo o que vivi e de todos os lugares que me habitam.”
porque no fim das contas, eu não sou só do lugar onde nasci, nem só do lugar onde moro. sou do trajeto entre um e outro. sou das pontes que construí. sou, sobretudo, de mim mesmo.
júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
Eu até entendo as pessoas perguntarem de onde sou, ainda que nao mude nada pra elas, pela curiosidade. Inclusive eu também fazia isso quando morava em Sao Paulo e encontrava algum estrangeiro. O problema é que quando todo mundo faz isso a gente escuta as mesmas perguntas (e histórias das férias nas praias brasileiras que nem conheco) pelo menos 1 vez por semana. No meu caso, faz 11 anos que venho escutando. E uma hora cansa. Às vezes queria nao ter tonada nao pra parecer o que nao sou, mas pra nao ser considerado diferente, pra passar como apenas mais um no meio da multidao. Como acontece em Sao Paulo, minha cidade natal. É uma das coisas que mais gosto quando estou lá: nao ser visto como diferente.
a gente é sempre um somatório dos muitos lugares por onde passa e das pessoas com quem interage...