davi e jônatas
#73: deus não pode ser o sujeito se o verbo é odiar. não importa qual seja o objeto. deus ama o orgulho e se orgulha de mim.
olá vocês!
uma das canções mais conhecidas entre os evangélicos é a que diz que “se o espírito de deus se move em mim, eu canto como o rei davi.” depois os verbos vão sendo trocados por outros como eu danço, eu luto e eu venço. apesar de ser de domínio público, a cantiga ficou mais conhecida depois de ser gravada num projeto crianças diante do trono, grupo musical capitaneado pela família valadão, dos pastores e irmãos ana paula e andré. (sim, aqueles.)
quando eu era criança, eu via davi como um super herói, como os da marvel. imagina que você é um jovem pastor franzino e desacreditado e de repente, descobre que há uma profecia dizendo que você vai ser o grande salvador de uma nação. davi tinha uma sina de luke skywalker. mesmo sem saber guerrear, ele sentiu no coração que devia cumprir seu destino e foi. a história é conhecida hoje em verso, prosa e novela da record: o pequeno davi derrotou golias com uma funda e uma pedra.
e o que costumam contar como sendo o final de uma história épica, é na verdade o começo de uma grande história de amor. o jovem davi apresenta a cabeça e a história de sua vitória ao rei perante a corte real, incluindo o filho e herdeiro de saul, o príncipe jônatas. e num verso conciso vemos toda a vida do menino davi mudar: “e aconteceu que, acabando ele de falar a saul, a alma de jônatas se uniu-se à alma de davi, e jônatas o amou como a sua própria alma” (1 samuel 18:1).
não há muitas histórias de amor na bíblia, e menos ainda nas quais o amor é redentor. rute e noemi, cujo voto uma para a outra forma a base dos votos de casamento modernos (“aonde você for, eu irei, e onde você estiver, eu ficarei; o seu povo será o meu povo e o seu deus, o meu deus” (rute 1:16 ). o centurião que suplica a um jesus atônito em nome de seu amado servo (lucas 7:1-10) é outra.
o amor de davi e jônatas é a apoteose desse amor redentor; apesar de séculos de exegese e teorias mal formuladas, o relacionamento deles é explicitamente romântico, “excedendo o amor das mulheres” (2 samuel 1:26). e é o meio pelo qual deus (em sua maneira usual de favorecer o marginalizado, o segundo filho, o herói acidental) refaz e renova o reinado decadente do atormentado saul. não há como afirmar se eles chegaram a consumar esse amor ou se ficou só no terreno platônico. mas não há como negar que davi amou jônatas, que o amou como a sua própra alma.
fazendo uma aliança um com o outro, o amor de davi e jônatas é de uma intensidade que dissolve o senso de identidade. jônatas, príncipe da casa de seu pai, despe-se para davi, cobrindo um a um o jovem pastor com as vestes que tirou: “e jônatas despiu-se do manto que trazia sobre ele, e o deu a davi, e suas vestes, até à sua espada, e ao seu arco, e ao seu cinto” (1 samuel 18:4). essa destruição, que é também uma duplicação, encena ritualmente uma união que jônatas torna explícita quando compartilha sua primogenitura com seu amado davi: “tu serás o rei de israel, e eu serei o teu próximo” (1 samuel 23:17).
é uma aliança que une não apenas dois povos, mas dois reinos, pois o israel do pai de jônatas dá lugar ao ascendente judá de davi. esta união enfurece o já desequilibrado saul, que se tornou invejoso do belo e popular herói, amado tanto pelo povo quanto por deus, regado em sua corte com canções, riquezas e esposas para a inimizade fervilhante do monarca.
mais de uma vez em seus ataques, o rei arremessa sua lança em davi enquanto ele entretém a corte com sua música, eventualmente forçando nosso herói a fugir para a floresta. mas jônatas arma um plano para avisar davi se seu pai planejar um assassinato; ele atirará seu arco - o arco com o qual ele simbolicamente selou sua união - e dependendo de onde as flechas caírem, davi (escondido no deserto) saberá a intenção de saul.
jônatas tenta desesperadamente intermediar a paz, mas a fúria de saul é exposta. “não sei eu que escolheste o filho de jessé para tua própria confusão e vergonha da nudez de tua mãe?” (1 samuel 20:30), saul grita diante da indisfarçável inclinação de seu filho. jônatas percebe que o ciúme de seu pai atingiu um nível assassino avisa ao amado com um tiro de flecha.
os dois se encontram furtivamente na floresta para uma terrível despedida, que o texto descreve com uma franqueza descarada: “e eles se beijaram e choraram um com o outro, até que davi se excedeu” (1 samuel 21:41). aflitos, eles se separam, renovando seu voto: “o senhor esteja entre mim e ti, e entre minha semente e a tua semente para sempre” (1 samuel 21:42). eles se encontram apenas mais uma vez, novamente na floresta, em segredo, em meio a uma das caçadas obsessivas de saul por seu adversário, e nunca mais.
despojando-o de todas as honras e pretensões de hospitalidade, a campanha de saul contra davi e sua facção guerrilheira os leva ainda mais para o deserto e saul ainda mais para a loucura. o completo abandono de deus e a obsessão do rei por seu legado são sinalizados por sua consulta com a bruxa de endor, que usa seu poder necromântico para convocar o profeta morto samuel e finalmente murchar a raiva do rei. uma paz inquieta é mal negociada entre o rei e o pastor quando os filisteus novamente invadem israel.
davi não está no monte gilboa quando jônatas morre. ele também não pode impedir as profanações que eles infligem ao corpo do príncipe. despojando-o da armadura que uma vez colocou em davi, os filisteus o mutilam e enforcam nas muralhas da cidade. por fim, é recuperado, queimado e enterrado sob uma árvore com o corpo de seu pai saul, que morreu de maneira ignóbil (seja por suicídio ou pelas mãos de um servo, o texto e a história não são claros).
quando davi ouve a notícia de gilboa, sua dor é terrível. o poeta (e agora rei) canta uma elegia para jônatas, um dos momentos mais citados e belamente dolorosos da bíblia:
“como os poderosos caíram na batalha!
jônatas jaz morto em suas alturas.
lamento por você, meu irmão jônatas;
você era tão querido para mim:
maravilhoso foi o teu amor para comigo, superando o amor das mulheres.
como os poderosos caíram!
e as armas de guerra pereceram!” (2 sm 1:25-7)
davi procura uma maneira de honrar seu amado - e perdido - jônatas, e ouve que ele deixou para trás uma criança, mefibosete, que resultou sem poder caminhar. contrariando o conselho de destruir esse candidato rival em potencial ao seu novo trono, davi o procura e o leva à sua corte, “para que eu lhe mostre benevolência, por amor de jônatas” (2 samuel 9:7). e davi decreta para sempre que os filhos do reino de israel aprendam “o lamento do arco”, sua canção para jônatas, perdido nas alturas de gilboa, a quem o rei amava como a si mesmo.1
deus do orgulho
[gatilhos: abuso sexual, pensamentos suicidas]
eu era ainda uma criança muito pequena quando ouvi pela primeira vez que deus odeia os gays. e cresci com esta ideia, a de que o sexo entre dois homens era pecado (a palavra corrente era “abominação”). aos seis anos, um menino de dez, tomou a força meu corpo frágil. me machucou. me maculou. e inclucou na minha cabeça ainda cheia de conceitos mal formados, que eu iria para o inferno.
com o tempo, cada vez que eu ouvia alguém dizer algo em tom de reprovação sobre gays, eu me encolhia em mim mesmo, em silencio, com medo de que me “descobrissem”. e com o passar do tempo, com desejos aflorando, ficou mais comum ouvir de familiares e amigos da família piadas sobre meu jeito de andar, falar, existir. e sempre era seguido com minha própria vigília sobre mim mesmo. se eu parasse de me comportar assim, se falasse mais grosso, as pessoas me deixariam em paz.
e o pior é que eu nem sabia o que era ser gay. só não queria que dissessem que eu era, porque deus odiava os gays e logo, iria me odiar. já adolescente, me lembro bem de, num acampamento desses para jovens, ouvi do líder de jovens, alguém por quem eu tinha muito respeito e admiração que era preciso fazer de tudo pra calar dentro de mim algum desejo de “abominação”. ele dizia pra gente não lavar demais o pinto, pra não dar vazão aos desejos da carne.
dizer para uma pessoa adulta que ela vai para o inferno por ser quem é, é horrível. imagina para um garoto de 14 anos, totalmente perdido. eu comecei a pedir a deus para não ser gay. ou, que se não tivesse jeito, que ele me matasse. porque eu não queria ir para o inferno.
eu orei pra deus não me deixar ser gay até os 22 anos. eu pensei em me matar, fui abusado por homens adultos e apanhei na escola. e não me sentia seguro para me abrir para ninguém. na minha cabeça , culpa era minha, porque não agia como homem.
quando eu me assumi, ouvi pessoas da família dizerem todo tipo de coisa, que eu não tinha vergonha na cara e era depravado. e mais uma vez, que deus odeia gays. então eu passei a odiar a deus de volta. até que uma noite, eu me rendi. e ouvi a sua voz. e o encontrei. não aquele deus, o deus-fardo, o deus-culpa, o deus-ódio, o deus-vergonha. mas o deus-leve, o deus-dança, o deus-risada, o deus-alívio, o deus-orgulho. deus ama o orgulho, porque ele mesmo se orgulha de mim.
deus não pode ser o sujeito se o verbo é odiar. não importa qual seja o objeto. simplesmente não pode ser. é risível, patética, bisonha e absurda a ideia de que a grande força motriz do universo se detenha em leis escritas há milênios sobre com que corpo meu corpo pode ou não gozar. não há papel escrito que me convença de que eu mereça a danação eterna, se esta existe, apenas sendo quem eu nasci pra ser.
que se ecoe este canto: se o espírito de deus se move em mim, eu canto, eu danço, eu luto, eu venço, e, sobre todas as coisas, eu amo como o rei davi.
links, links, links!
já que hoje é dia dos namorados, vou deixar aqui três canções pra fazer seu coração bater mais forte pensando no amor da sua vida (que também pode ser você mesmo). pra começar, norah jones cantando love me tender. duvido você não dar um suspiro que seja. (sim, da trilha de o diário da princesa 2).
pra ficar no clima, outra canção de suspirar, hope there’s someone, do antony and the johnsons.
e como as melhores coisas da vida vêm em três, mais uma canção pra suspirar: chico buarque e nara leão cantando dueto. e pra ficar no tema do amor, logo abaixo, deixo uma lista de duetos românticos que eu amo.
TOP 10
duetos românticos para o dia dos namorados
something stupid - frank sinatra e nancy sinatra
relicário - cássia eller e nando reis
flutua - liniker e jonny hooker
ain’t no mountain high enough - marvin gaye e tammi terrell
grão de amor - marisa monte e arnaldo antunes
these are the songs - elis regina e tim maia
milagreiro - djavan e cássia eller
seus olhos - ivete sangalo e marcelo camelo
dueto - nara leão e chico buarque
islands in the stream - dolly parton e kenny rogers
hey, chegou até aqui? pois se gostou ao ponto de ler até o fim, que tal apoiar essa publicação autoral, independente, sem recurso e sem assinaturas? é só chamar na dm . qualquer quantia é bem-vinda, é só pensar quanto você investiria numa assinatura de um conteúdo que você curte. outra forma bacana de ajudar é compartilhar com quem você acha que gostaria de ler meu conteúdo. desde já muito obrigado!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Me emocionei lendo. Uma história sofrida e, ainda bem, com muita beleza pelo caminho. Deus ama o orgulho sim! Deus é alegria, dança e amor!
Lindo texto. Também carrego comigo muitos traumas por ter sido criada em família evangélica.