cuidado com as gêmeas
#114: e se de repente você fosse viver a vida de outra pessoa, com muito mais (ou muito menos) acessos e oportunidades?
olá vocês!
veja onde a curiosidade nos leva. cá estava fazendo uma lista de filmes infantis dos anos 90 cujo roteiro só pode ter saído de mentes bem perturbadas, como o pequeno stuart little e operação cupido. aí fui ler mais sobre esse último e entrei em um buraco negro cheio de informação. você sabia que esse foi o primeiro filme da diretora nancy meyers, de o amor não tira férias e simplesmente complicado? eu não sabia. e isso não é nada perto do que o clássico da sessão da tarde me fez descobrir. tem até nazismo envolvido na história. vem comigo que te conto!
resulta que o filme que todos conhecemos, estrelado por duas lindsay lohan pré-adolescentes, na verdade um remake do longa de mesmo nome (parent trap, em inglês), de 1961, produzido pelos estudios disney. claro que fui buscar para ver, no disney plus. o filme é uma fofura só, desde a animação da abertura, até a atuação de hayley mills, tão perfeita no papel de gêmeas que eu só me toquei que não eram duas meninas lá pelo meio do filme. os efeitos especiais estão incríveis, se pensamos que é um filme de mais de 60 anos.
e o roteiro é quase o mesmo: um casal se divorcia e decide separar suas bebês gêmeas, levando-as a serem criadas sem que uma saiba da existência da outra. até que, em um acampamento de verão, sharon, criada pela mãe em uma mansão em boston e susan, criada pelo pai em um rancho na califória dão de cara uma com a outra e começam a ligar os pontos. a partir daí, elas decidem trocar de lugar, em um plano para fazer que os pais se juntem de novo.
na versão de 1998, as gêmeas se chamam hallie e annie e uma delas vive em londres e a outra, nos estados unidos. depois de ver o filme, que eu julguei ser a história original, fui procurar a pessoa que escreveu e aí, foi um plot twist atrás do outro. primeiro, que o roteiro é uma adaptação de das doppelte lottchen, um livro infantil alemão escrito em 1949, de erich kästners. o livro foi pensado como um roteiro de filme em 1942, com medo de que seu roteiro fosse virar propaganda nazista, ele preferiu deixar a história de molho.
como erich era pacifista e contrário ao regime de adolf hitler, ele preferiu seguir escrevendo outras coisas, sob pseudônimo. só depois que acabou a segunda guerra é que ele tirou a história da gaveta e transformou em livro. e após ser um sucesso na alemanha, o mesmo foi traduzido e ganhou o mundo: na inglaterra se chama the parent trap (armadilha para os pais), como os filmes; nos estados unidos é lisa and lottie. não encontrei nenhuma informação se o livro foi traduzido para o português, mas encontrei uma versão em espanhol chamada las dos carlotas (as duas carlotas), que foi a que eu li num pdf digamos, alternativo.
uma curiosidade é que não são somente os dois filmes estadunidenses que foram feitos a partir do livro. antes mesmo da versão de 1961, houve versões na alemanha (narrada pelo autor), japão e reino unido, que mais tarde também ganhariam remakes. o filme de walt disney gerou três sequências nos anos 80. além disso, existem uma versão iraniana e nada menos que quatro indianas, em idiomas diferentes. também há um série em anime, de 29 episódios, uma hq e um musical de teatro.
mas voltando ao que me levou a este vórtice é a impressão que eu tinha, de que a premissa do filme é insana. que tipo de pais decidem separar duas irmãs e cada um criar só uma? parece coisa de roteirista chapado, mas o que o livro propõe é revolucionário. os filmes se concentram mais nas partes de comédia romântica e o livro é uma fábula, cuja moral é refletida nas diferenças que pode haver entre dois indivíduos, teoricamente iguais, crescendo em realidades diferentes e depois mudando totalmente de ambiente.
os capítulos mais interessantes são os que mostram como as gêmeas se saem, uma ocupando a vida da outra. lisa vai para munique, fingindo ser lottie, e lottie vai para viena, fingindo ser lisa. será que a selvagem lisa conseguirá ser disciplinada, cozinhar e ser uma estudante modelo? e será que a sua tímida e inibida irmã será travessa, extrovertida e assertiva? e os pais vão notar alguma mudança na que julga ser a “sua” filha?
spoliler: as garotas não conseguem absorver a natureza uma da outra e ambos os pais observam a mudança, mas não suspeitam de nada. o mesmo para os professores, já que a história aborda como elas atuam também fora de casa.
“os professores de munique estavam mais ou menos habituados a que a jovem horn regressasse das férias menos estudiosa, menos ordeira e atenta, mas por outro lado, mais viva e compreensiva. e os professores em viena ficaram encantados ao descobrir que a filha do maestro falfy estudava mais nas aulas e era muito melhor em aritmética.” las dos carlotas, erich kästners, em livre tradução.
claro, o livro tem o mesmo final feliz: os pais descobrem que as meninas se mudaram, o que eventualmente leva ao seu reencontro e a um novo casamento. mas no cerne do livro, está uma discussão sobre a individualidade: é possível ocupar o lugar de outra pessoa sem que ninguém saiba? e será que ao ser transportado para outro ambiente uma pessoa está mais propensa a manter sua essência intacta ou tende a mudar de valores e opiniões?
e o livro não deixa de fazer um recorte de gênero e classe de que obviamente a disney abriria mão: como as meninas são gêmeas idênticas, fica implícito que suas personalidades diferentes são resultado de sua educação. nesta versão, uma menina cresce com um pai homem, em um ambiente rico se desenvolve de forma completamente diferente de uma menina que cresce com uma mãe solo em uma família com dificuldades econômicas.
peço desculpa ao camarada erich, mas eu tenho uma crítica ao seu genial romance. acho que a idéia de que uma criança de nove anos já tenha um caráter tão definido que seja incapaz de mudar é meio radical pra um livro infantil. mas não deixa de ser tentador ficar se questionando como seria a vida se fôssemos outra pessoa. e se de repente você fosse viver a vida de outra pessoa, com muito mais (ou muito menos) acessos e oportunidades?
eu que sempre fui caipira e de família com menos posses, acho que no lugar da lindsay lohan inglesa viveria em total estado de “chico bento no shopping”. mas não somente de mudanças de realidade econômica a gente pode imaginar, ou mesmo provar. quando me mudei sozinho pra buenos aires, o que mais me atraía era a idéia de que ninguém me conhecia e logo eu poderia ser quem eu quisesse. não foi uma mudança radical da minha essência, mas confesso que ousei mais, me arrisquei mais e até enfrentei velhos medos e crenças. recomendo.
se você leu até aqui, tem tempo de fazer uma doação para as vitimas das enchentes do rio grande do sul. durante todo o mês de maio vou seguir divulgando alguns projetos que você pode ajudar com doações e também compartilhando. tem um monte de outros nas redes, deve ter algum que toque mais o seu coração e as demandas são variadas. mas o importante é ajudar.
cufa - central única das favelas é uma organização sem fins lucrativos fundada em 1999 e que desenvolve trabalho social em vários estados do brasil. eles tem um canal de doações via pix para auxiliar na reestruturação das residências atingidas pela água no rio grande do sul. o pix da da cufa é doacoes@cufa.org.br.
o mst, movimento dos trabalhadores sem terra está atuando em várias frentes, como cozinhar diáriamente milhares de marmitas para pessoas em abrigos provisórios no vale do taquari. para colaborar com dinheiro, a chave pix é: CNPJ 10.568.281/0001-37.
uma rede de mães está levantando ítens de cuidados para bebês como fraldas, pomadas para assaduras, leite em pó, etc. minha amiga, luana carvalho está à frente e pode dar mais informações pelo instagram dela. quem quiser doar, qualquer valor, a chave pix é o email : criancasdors@gmail.com.
por fim, quem puder doar roupas plus size, a feira de roupas plus size de porto alegre está arrecadando tanto peças quanto valor em dinheiro para comprar roupas íntimas. é importante lembrar porque muita gente que veste tamanhos grandes não encontra roupas nas doações. e claro, agasalho, sapato, roupa de cama. algo que você não use, mas esteja em boas condições, vai fazer uma diferença enorme.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Que edição maravilhosa! Estou impressionada de essa história ser originalmente alemã. Parece que o autor antecipa em sua fábula a fragmentação que a Alemanha passaria depois da guerra, um muro dividindo essas irmãs que cresceram radicalmente diferentes, de pais divorciados 🤯
bah, muito bom saber onde começou essa história! Aliás, sou mãe de gêmeas e já li algumas reportagens falando de vááááários casos de gêmeos separados que se reencontram e descobrem muitas coisas inusitadas em comum. Tipo, sei lá, mania de enrolar os cabelos com os dedos, sabe? Enfim, só pra dizer que é bizarro, mas existem muitos casos de pais que separam gêmeos. Mas o que eu curti ainda mais depois de ler a história, foi o comentário da Aline, o que me fez pensar como as coisas reais, sócio politicamente falando, encontram enredo nas histórias. Ps: minhas gêmeas são iguais pro mundo, mas pra mim seria impossível confundi-las. Embora as vezes eu faça isso kkkkkkk