chega de evidências
#116 -uma lista com 10 músicas do pai e tio da sandy, muito melhores que evidências, que é sim, uma obra-prima, mas já cansou
olá vocês!
ontem eu assisti a comédia romântica brasileira evidências do amor, que apesar do título ruim, não se deixe enganar, é um filme ruim também. é a história de um casal, interpretados por sandy e fábio porchat, que se conhecem em um karaokê fazendo um dueto da canção mais prostituída da história, evidências. o casal passa três anos juntos e, após o término, a cada vez que marco (porchat) ouve a música, volta ao passado em alguma lembrança triste da relação. o problema é que a música toca o tempo todo e ele não consegue fugir. é um roteiro do porta dos fundos esticado pra caber num filme de duas horas.
tá bom, não chega a ser pavoroso. tem um roteiro com mais buraquinhos que coração de chiquitita? sim. mas tem piadas que funcionam bem, e fábio porchat, apesar do papel de fábio porchat, é um ator muito bom quando não está gritando histrionicamente. já a sandy no papel de sandy de peruca tá osso. muito maquiada e pouco expressiva, sandoca mostra que seu negócio é cantar mesmo. olha que eu sou fã de sandy e júnior, mas ver a cantora em cena é constrangedor. ao lado dela o fábio porchat parece o paulo autran.
mas pra mim o maior problema do filme é a música evidências. composta por josé augusto e paulo sérgio valle, magistralmente cantada por chitãozinho e xororó, a canção de amor desbragado virou um hit de karaokês e começou a ser piada recorrente no twitter na década passada, 20 anos depois de haver sido gravada pela dupla no ótimo disco cowboy do asfalto, de 1990. e o filme é isso, um esquete em torno de um meme saturado. imagina um filme com alguém falando de boleto, litrão e chão de taco em pleno 2024. pois é.
a música, neste contexto, pertence a um cancioneiro limitado de músicas que alguém resgata no twitter, viraliza e passa a ser o novo boleto-litrão da internet. não à toa a outra música presente no filme é cheia de manias, a “evidências” do raça negra. eu adoro evidência, mas tenho um bode grande cada vez que alguém evoca ela como sendo a epítome da obra de chitãozinho e xororó. basta um google pra saber que eles são uma máquina de fazer hit, desde os anos 70.
sabe gente que é ironicamente fã de alguma coisa? eu detesto. e não aguento também papinho de “guilty pleasure”. uma galera super urbana ultra moderninha, que passa o tempo todo falando mal de música sertaneja e depois vem meter evidências no karaokê? ai me poupe, se poupe, nos poupe, nem evidências, nem chitãozinho e xororó, nem os autores merecem isso.
a carreira de chitãozinho e xororó já tem 50 anos e eles não são os maiores à toa. já ouviu alguma moda de viola na voz deles? o timbre único do pai de sandy1 combinada com a segunda voz de chitãozinho resulta num som harmônico e bonito e as letras em sua maioria são composições sobre a natureza, o campo e amores malfadados porém sinceros. bem diferente do combo carrão, cachaça e chifre, que tomou conta da música sertaneja dos anos 2000 pra cá.
por isso, na edição de hoje eu venho com uma lista com 10 músicas do pai e tio da sandy, muito melhores que evidências, que é sim, uma obra-prima, mas já cansou. vamos renovar este repertório? garanto que tem muita coisa boa aqui, pra cantar junto, pra se apaixonar e pra virar fã sem ser irônico. vem comigo!
fogão de lenha - um libelo de todo filho que sai do lar dos pais para ganhar o mundo, mas sempre lembra com saudade das coisas mais singelas, como a comida da mãe. confesso que me engatilha muito ouvir esta, é meu hino caipira. verso favorito: “eu sempre tive tudo e tudo está ai”.
no rancho fundo - o clássico de ary barroso e lamartine babo encontrou nos sertanejos a sua versão definitiva. foi tema da novela tieta e sempre habitou a vitrola da minha casa, na infância. infelizmente fizeram uma versão horosa para essa novela de mesmo nome. como é que me pegam um clássico desses e fazem aquilo? verso favorito: “e a lua, por esmola, vem pro quintal deste moreno.”
terra tombada - sucesso dos anos 80, esta canção teve uma regravação recente com ninguém menos que milton nascimento, que gravou um álbum inteiro com os irmãos. se o milton é fã de chitãozinho e xororó, eu acho mico não ser fã também. a letra faz uma analogia sobre as etapas de um plantio com as de uma paixão. verso preferido: “lavrador tombando terra, dá de longe a impressão
de losângos cor de sangue desenhados pelo chão”brincar de ser feliz - se é de um refrão chiclete para cantar junto que você precisa, esta aqui é perfeita. e ainda tem a versão que todo moleque já cantou no colegial “como é que eu posso vomitar batata se eu comi repolho”. verso preferido: “tranquilamente vai e volta, entra e abre a porta do meu coração”
falando às paredes - essa aqui habita no mesmo universo de nothing compares 2u do prince e por causa de você da dolores duran: uma crônica sobre o vazio que fica em uma casa quando a pessoa amada vai embora. recomendo ouvir se tiver com o coração partido. lágrimas garantidas ou seu dinheiro de volta. verso preferido: “você foi o amanhecer mais colorido e sem sentido se tornou entardecer.”
meu disfarce - o desabafo de um apaixonado que não aguenta mais estar perto do crush e não poder gritar o quanto a ama. a versão do xororó com a sandy é uma das coisas mais lindas. verso preferido: “eu me solto em sua festa, mas sozinho eu não consigo”.
nuvem de lágrimas - aqui mais um hit dos karaokês. o dueto com fafá de belém é clássico, e o solinho de acordeon já arrebata nos primeiros segundos. o refrão pode até ser grudento, mas a letra tem construções poéticas interessantes com rimas internas e intercaladas. verso preferido: “vivo inventando paixões pra fugir da saudade, mas depois da cama, a realidade é só sua ausência doendo demais”
obras de poeta (os passarinhos) - uma das obras-primas da música sertaneja, esta canção faz um paralelo entre o trabalho dos passarinhos e de compositores e poetas. o mais legal é que a gente aprende um monte de nome de passarinhos ao longo da letra. música caipira também é cultura. verso preferido: “na copada de um pinheiro, canta alegre o bem-te-vi. à tarde na capoeira, canta triste a juriti.”
planeta azul - ecologistas antes de ser modinha, chitão e xoró gravaram essa música na época da eco92 e alertavam para os perigos do desmatamento. numa época em que ninguém falava em aquecimento global, os sertanejos denunciavam que uma hora esta conta ia chegar e a gente ia pagar bem caro. verso preferido: “o sol abrasador rachando o leito dos rios secos, sem um pingo d'água”.
não deslique o rádio - essa tem uma melodia linda e é sobre um cara que gravou uma música só pro caso da ex estar girando o dial do rádio ter topar alguma vez com a voz dele. pra quando a pessoa te bloqueia em todas as redes, mas não pode te bloquear na rádio am. e eu simplesmente amo a maneira com que xororó pronuncia a letra r, parecendo o galvão bueno. verso preferido: “eu ando tão sozinho e não consigo esquecer que eu e você já fomos nós”.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
meu marido não consegue pronunciar xitãozinho e xororó, então ele chama a dupla de “el papá de sandy”
Então, já nem tinha vontade de ver o filme, agora ainda mais. Eu amo esses clássicos do cancioneiro sertanejo, que ouvia no rádio, morando lá nos profundos rincões do sul e do norte. Eu me emociono, mas não consigo esquecer a crítica desses amantes do agro que exaltam o amor à terra nas canções e na prática é aquilo que o agro faz: lucro acima de tudo, devastação acima de todos. Aqui na hecatombe que atravessamos no RS, isso fica mais do que nítido.
Sandy de peruca e porchat Paulo Autran me pegaram muito