buendía e companhia
#150 - adaptação do clássico de gabo, a série 'cem anos de solidão' acerta em cheio ao não abrir mão de uma produção cem por cento latinoamericana.
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olá vocês!
eu li cem anos de solidão pela primeira vez em 2002, eu tinha a mania de imaginar ela como uma novela de tv. na minha mente as personagens tomavam a cara de atores e atrizes da globo e com isso, eu trazia a história mais para perto. e a história dos buendía, criada por gabriel garcía marquez, misturava realismo mágico com uma trama familiar não tão diferente dos melodramas televisivos. quando eu lia coisa de fantasmas, mortes mágicas, gente que não dorme eu só pensava “mas isso aqui é uma novela do benedito ruy barbosa”.
só depois é que eu me dei conta que, na verdade, os criadores das novelas é que beberam na fonte de gabo. é possível reconhecer essas referências em pantanal e renascer, por exemplo. e também em obras de aguinaldo silva (a indomada, pedra sobre pedra) ou dias gomes (saramandaia, o bem amado). cem anos de solidão daria um novelão ou pelo menos uma minissérie de maria adelaide amaral. no meu universo, josé arcádio buendía era tony ramos, úrsula era a eliane giardini, e os filhos eram o marcos palmeira e o rodrigo santoro. então nunca entendi esse papo de que o romance seria “infilmável”.
claro que se tratando da obra de um nobel de literatura, o medo é que os estúdios de hollywood oferecessem uma quantia obcena e transformassem um dos meus livros preferidos em algo insoso e aviltante, como aconteceu com a adaptação de o amor nos tempos do cólera, de 2007, onde que nem javier barden e fernanda montenegro salvaram o filme, hoje esquecido pelo público (eu desejaria esquecer também). não era sem motivos que gabriel negava constantes propostas de filmarem a saga. e quando saíram as notícias de que a dona netflix havia negociado os direitos com os herdeiros do autor meu pensamento foi: “isso ou dar algo muito bom ou vai dar uma merda total, não tem meio termo.”
e não é que deu bom? a plataforma lançou em dezembro a primeira parte de duas, com oito episódios cada (a segunda estreia em junho) e pra mim foi uma das melhores produções da netflix nos últimos anos. aqui eu quero elencar o que eu acho que contribuiu para o sucesso da série e também falar do que poderia ter sido melhor. vem comigo!
para quem não conhece, cem anos de solidão foi lançado em 1967 e conta a história da família buendía ao longo de sete gerações na cidade de macondo. josé arcadio buendía, o fundador, e úrsula iguarán, sua esposa, lutam contra uma maldição de solidão e repetições. seus filhos, josé arcadio, aureliano, amaranta e rebeca e o neto arcádio (criado como um filho), enfrentam destinos trágicos, marcados pelo amor e pela amargura. a história também faz uma crítica social ao mostrar como a igreja e a política afetam a paz do povoado, trazendo para estas pessoas a discórdia e a culpa.
o primeiro grande acerto da série está em não inventar a roda e criar um novelão. a saga atravessa sete gerações de uma mesma família e tem todos os elementos necessários para se fazer uma boa telenovela: tem traição, segredos, amores proibidos, paternidades nunca reveladas, arcos que se repetem no tempo. o misticismo presente é um tempero da história, mas tirando o que de mágico acontece na fictícia macondo, todo o demais poderia acontecer com qualquer família e, ao transpor para a tela, a série reverencia tanto a literatura quanto a dramaturgia latinoamericana.
outro ponto forte claro é a celebração da identidade colombiana. exigencia da família de gabo, a série foi inteiramente filmada na colômbia, terra natal do escritor. a decisão resultou em cenas belíssimas, explorando as deslumbrantes paisagens naturais do país. o fato da série ser totalmente falada em espanhol também confere autenticidade á produção, já que o realismo mágico, intrinsecamente conectado com a américa latina, perderia sua força, se os personagens falassem em inglês, por exemplo.
ainda sobre a linguagem, os produtores optaram por manter o sotaque costeño, próprio da região litoral da colômbia. pode parecer uma bobagem para quem vê dublado ou não presta atenção em detalhes, mas é uma maneira correta de representação e, por que não?, uma forma de mostrar uma variação do castelhano para quem está aprendendo o espanhol. ainda sobre a linguagem, foi um acerto manter o estilo de escrita do autor, que prezava pelo discurso indireto, por meio de uma narração em off. isso enriquece bastante o texto e ajuda os diálogos e as imagens a contarem a história.
outro grande acerto criar uma cidade cenográfica real que, a medida em que a trama avança, vai tendo sua paisagem alterada. a área da cidade ocupa uma área equivalente a dois campos de futebol e a preocupação com detalhes é impressionante. não seria a mesma coisa fazer em um estúdio e tacar chromakey em tudo. também é louvável que todas as cenas “sobrenaturais” tenham acontecido em cena. explico, quando uma cesta de bebê flutua, ou uma pessoa desaparece no ar, esses efeitos foram realizados no estúdio, não inserido na pós-produção. a reação dos atores era legítima.
a preocupação em ter apenas atores colombianos no elenco deu à série uma representação legítima das cores da população afro-caribenha, com atores de etnias diversas. isto é importante para firmar no imaginário popular, quase sempre eurocêntrico, como realmente são as pessoas desta região. por exemplo, a personagem rebeca (akima maldonado) é descrita no livro como tendo uma beleza etérea, com uma pele diáfana. mas em nenhum momento a cor de sua pele é descrita. foi o bastante para que algumas pessoas reclamassem que imaginavam alguém como scarlet johansen (!) no papel. tomaram algumas patadas nas redes, mas pelo menos agora sabem que o caribe e a colômbia têm pessoas de todas as cores.
o elenco, que mistura atores consagrados, atores amadores e gente que nunca tinha atuado, está muito bem, com destaque para diego vasquez e marleyda soto como josé arcádio buen día e úrsula iguarán na fase adulta, viña machado como pilar terneira e moreno borja como melquíades. a direção de arte ajuda a construir esse cenário meio real e meio onírico, e figurinos e maquiagem cumprem bem o papel. enfim, uma série que afasta o medo dos fãs e realmente ajuda a trazer novos leitores para o universo encantado de gabriel garcía marquez.
mas como nem tudo são flores amarelas voando pelo vento, eu realmente achei que a série foi reverente até demais, se é que isso é possível em uma adaptação. eu acho que as duas partes de oito episódios poderiam bem ser só uma com 14, já que em alguns momentos eu achei que a narrativa meio que se arrastava sem necessidade. pra quem vê apenas um episódio por dia, como uma novela, talvez não fosse tão forte esta impressão. mas quem assiste a episódios seguidos, como na lógica do streaming, fica realmente entediado em algumas passagens, o que não ocorre na leitura do livro.
ao mesmo tempo, algumas conclusões de arcos narrativos, como mortes de personagens importantes, me pareceram corridas e mal desenvolvidos no último capítulo. você pisca e alguém que era uma das figuras centrais da trama morre e já passam para outra coisa do nada. algo a melhorar na segunda temporada, que já desperta minha curiosidade.
mais do que uma simples crônica familiar, cem anos de solidão é uma metáfora da américa latina, de seus conflitos, revoluções e cicatrizes. a solidão que permeia os buendía é também a solidão de um continente fragmentado entre tradição e modernidade, entre o passado colonial e a busca por identidade. levar um projeto de adaptação como este exige muito respeito. e é uma grande surpresa que esse respeito venha dos herdeiros do criador, já que é comum vermos artistas falecidos tendo sua obra tratada como molho de tomate só para a família arrecadar até o último centavo.
é um grande prazer saber que agora os personagens da novelinha da minha imaginação também podem ser vistos na tela, mantendo intacta sua essência, que é ser regional, universal e conectada com o presente, não importa qual seja o tempo em que seja descoberta. é o amor nos tempos do streaming.
ps: esta newsletter vai dar uma pausa de duas semanas para umas férias que não estavam programadas, mas eu tive a oportunidade de passar o carnaval no brasil depois de oito anos e não sou nem doido de não aproveitar. obrigado por ler cinco ou seis coisinhas, se gostou, recomende, comente e deixe um like. nos vemos em março.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Um deleite a série, aguardando a segunda parte. Queria dar um abraço apertado na Úrsula. 😅
Ju, eu amei a série. Cem anos é meu livro preferido da vida, mas quando li sobre a série e o cuidado que os herdeiros tomaram de colocar as condições que Gabo gostaria que tivesse, assisti já esperando algo legal.
vai passar o carnaval onde?
um beijo.