batidas na porta da frente
#161 - sobre aldir blanc, nana caymmi e a música que faz o tempo parar por quatro minutos e quarenta e quatro segundos
olá vocês!
se para gil o tempo é rei e para caetano, um dos deuses mais lindos, para aldir blanc, o tempo é um demônio, misto de criança e redemoinho. passa devagar feito quem sabe que não precisa correr, porque no fim, tudo vem até ele. entra sem pedir licença. nem espera convite. se instala na casa da gente como se fosse dono, ri da nossa cara, vira os quadros da parede, apaga os nomes no post-it da geladeira. mas há dias em que o tempo aparece feito canção. não com a nossa voz, mas com a voz de nana caymmi. grave, triste, elegante. uma voz que não se apressa, que escolhe as palavras com o cuidado de quem viveu cada uma delas.
em resposta ao tempo, essa voz se alia à poesia de aldir e à melodia de cristóvão barros, e juntos eles constroem uma canção que não se canta: se ouve calado. ou talvez se chora um pouco. porque o tempo não responde, mas aldir ousou perguntar. é difícil descrever o que acontece quando essa música toca, sobretudo de surpresa, no dial do rádio, no aleatório do spotify, ou só na nossa cabeça mesmo. parece que a sala muda de cor, o ar pesa, o coração afrouxa. tal como na canção, dá até vontade de beber um pouquinho, só pra ter argumento.
autor de mais de 600 canções, aldir escrevia com o ouvido de um cronista e a alma de um apaixonado. fazia das palavras um lugar de memória. em resposta ao tempo, ele não faz samba. faz uma elegia. uma carta pro tempo. ou talvez uma confissão. como só ele sabia escrever: com palavras que parecem já gastas de tanto sentir, mas que ganham outro brilho na mão dele. aldir escrevia como quem observa o mundo por dentro, com os olhos molhados e a garganta engasgada. e mesmo falando de ausência, de perda, de tudo que escapa, ele encontra um jeito de dizer: eu continuo aqui sentindo, lembrando, respondendo.
e aqui ele ganha um parceiro de peso, à altura de suas palavras. cristóvão contou em entrevista à carta capital que tirou a melodia todinha, de uma só vez no violão e enviou para aldir. e este, aceitando o desafio, mandou a letra completa no mesmo dia. imagina ser um gênio neste nível. nesta entrevista, de quando aldir morreu, cristóvão disse: “perdi um parceiro imperdível. faz falta para tudo. um cara humano, sensível. um dos maiores letristas que a gente já teve nesse país.”
resposta ao tempo é toda um duelo. de um lado, o tempo, esse senhor que zomba das nossas lágrimas. do outro, a gente, tentando entender o que fazer com as folhas no coração, com a falta que faz um amor que não ficou. aldir escreve como quem já amou demais. como quem já perdeu demais. e ainda assim responde, com o peito cheio: “respondo que ele aprisiona / eu liberto / que ele adormece as paixões / eu desperto…” é uma ousadia bonita. desafiar o tempo. falar na cara dele: você pode até me vigiar, mas não vai me esquecer.
e aí vem a nana. com aquela voz que não se compara a nada. voz de abismo. voz de quem viu tudo por dentro e por fora. voz que não suplica, não grita, não imita: só é. na interpretação dela, o tempo abaixa a guarda. vira menino, vira sombra, vira criança que não soube amadurecer. às vezes acho que o tempo é esse sujeito que chega de mansinho, derruba a estante da sala, quebra os quadros, apaga os nomes. depois senta no sofá, pede um café e ainda pergunta por que você tá chorando.
nana nos deixou no começo do mês. nascida dinahir tostes caymmi, nunca precisou de legenda nem de sobrenome. nasceu filha de dorival, é verdade, mas foi só abrir a boca pra que ninguém mais duvidasse que aquela voz vinha do fundo da alma. a cantora nunca se curvou às modas, nem se guiou por hits. o maior sucesso, realmente popular, foi justamente resposta ao tempo, já depois de três décadas de carreira e graças à minissérie hilda furação, onde embalava a abertura. teve uma trajetória que passou pelos boleros venezuelanos, pelos sambas do pai, pelas canções densas que exigem mais do que afinação: pedem entrega. e por isso, mesmo sem o apelo popular de suas contemporâneas mais midiáticas, virou lenda.
morreu aos 84, no dia do trabalhador, deixando como legado uma obra irretocável e uma sinceridade rara. nos discos dos anos 70 e 80 estão algumas das interpretações mais arrepiantes da música brasileira, aquelas em que ela não canta apenas: vive a música, mastiga a dor, sussurra a esperança. nana nunca fez um disco medíocre. e mesmo quando o mercado virou as costas, ela seguiu ali, fiel ao que acreditava, para o bem e para o mal: nos últimos anos de vida, virou a casaca e se voltou contra companheiros de arte para defender o indefensável.
aldir se foi na pandemia. é irônico - e triste - que ele tenha morrido sem tempo. vítima da covid, em 2020, antes de poder tomar a vacina, sob um governo que escolheu a morte em vez da ciência. foi embora como tantos outros: sem velório, sem abraço, sem despedida. o tempo, ali, foi cruel. ficou mais um pouco, cantando. cantando como só ela sabia. ficou até agora há pouco, quando também resolveu ir. mas foi diferente. com homenagens, flores, manchetes. ela, que se declarou bolsonarista, morreu no mesmo país que matou aldir. é disso que o tempo gosta: dessas voltas amargas que ninguém explica.
eu não sei se nana e aldir se davam bem. mas sei que, juntos, fizeram uma das músicas mais bonitas sobre aquilo que a gente nunca entende direito: o passar dos dias, das certezas, dos amores. mas tem dias — raros dias — em que o tempo se comove. em que ele senta ao piano com cristovão bastos, veste um vestido de voz com nana, e se deixa atravessar pelas palavras de aldir. e nesse instante, mesmo que só por quatro minutos e quarenta e quatro segundos, ele parece responder. não com explicações, mas com beleza.
porque o tempo não consola, não devolve, não promete. mas às vezes, só às vezes, ele canta. e quando canta com aquela voz, a gente escuta e entende que viver também é isso: acumular silêncios, lembrar das perdas, chorar bonito e, quem sabe, perdoar.
o tempo, afinal, já viu de tudo. inclusive o nosso ridículo. e, mesmo assim, nos oferece músicas como esta.
ps: o canal do instrumentista cristóvão barros no youtube é uma mina de ouro, corre lá. e a discografia dele é uma das coisas mais incríveis que existe, que bom ser brasileiro e poder conhecer um gênio deste porte. aqui eu deixo um vídeo de uma das minhas músicas preferidas dele, parceria com o chico buarque, todo sentimento (sério, esse arranjo no piano é coisa linda demais, escutem):
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júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
Que edição linda Júnior!!
Seu lindo.