as aves que aqui gorjeiam
#38: para um imigrante, vibrar com o sucesso da anitta e fazer o l de lula a cada encontro com outros brasileiros é um rito frequente que capaz que nem no brasil haja tanto entusiasmo
hola qué tal?
há uma semana o governo de buenos aires deu uma festa para a comunidade brasileira que vive aqui. o celebra brasil é um evento anual, embora não tenha sido realizado nos dois últimos anos. mistura de feira de comida com shows e desfile de bandas, é uma maneira da argentina saudar ao país irmão e sua gente, já que há pelo menos 15 mil brasileiros morando aqui, fora as outras províncias.
é sempre um momento bonito, porque reúne brasileiros ávidos por matar a saudade de um açaí ou uma coxinha e pessoas de outras nacionalidades que querem provar um pouco da nossa comida e conhecer músicas e danças. o problema é que, como brasileiro, esse evento me gera sentimentos confusos.
é lindo ver como eles são de fato apaixonados pelo brasil, a ponto de aprenderem a culinária e reproduzirem as danças com fidelidade de detalhes. mas é muito melancólico ver que o brasil celebrado é um recorte de brasil, um brasil pé na areia, caipirinha, água de coco, etc.
é um brasil sob a ótica do turista argentino que se encantou pela praia e não conhece muito mais além disso. é uma festa maravilhosa mas deixa um vazio que não se preenche depois, aquela mistura de banzo com saudade, não por acaso, palavras que os brasileiros conhecem bem.
as aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá. a feijoada que aqui se como não é tão gostosa como a de lá, a passista que aqui samba não é tão sestrosa como lá e assim sucessivamente. eu tenho orgulho de ser brasileiro, mas um pouco de preguiça do estereótipo de brasil que perdura no imaginário coletivo do resto do mundo.
conversando com meu namorado, também imigrante, observamos que há um nacionalismo excessivo que só existe quando se está fora do país de origem. a camisa verde amarela no ba celebra tem um contexto diferente que na marcha do broxonaro, aqui é “o uniforme do meu país”. vibrar com o sucesso da anitta e fazer o l de lula a cada encontro com amigos brasileiros é um rito frequente que capaz nem no brasil tem tanto entusiasmo.
a gente quer ser parte porque sente que está trancado do lado de fora da história. então qualquer migalha de apreço por nosso samba ou nossa farofa, a gente fica emocionado. escolhemos viver em outro país e aceitamos as limitações que isto implica, como a distância e a saudade. mas algo sempre falta. eu amo viver em buenos aires e nem em sonhos voltaria a viver no brasil. mas o brasil segue vivendo dentro de mim.
acho que é porque falta uma raíz em comum. eu adoro aprender aspectos da cultura pop argentina, de memes a programas trash de tv, mas tem coisa que só quem nasceu aqui entende, então eu fico boiando. e ao contrário também, imagina citar, sei lá, mamonas assassinas, banheira do gugu, loira do banheiro num papo, pra em seguida ter que explicar todo o contexto. parte da graça vai toda embora.
mudando de pau pra cacete, eu acho a argentina perfeita como é, mas se eu pudesse acrescentar algo brasileiro na cultura local, seria, em ordem crescente: mototáxi, padaria e marmitex. o primeiro porque, apesar da mobilidade urbana ser um tema mais ou menos bem resolvido aqui, a praticidade de um motoboy pra cruzar a cidade e costurar o trânsito é algo que eu sinto muita falta.
o segundo porque, veja bem, buenos aires tem ótimas confeitarias e cafés, mas céus, como faz falta uma padaria que faça um bauru, um pão na chapa, um biscoito frito, um suquinho de laranja no capricho; que venda de um tudo, de pirulito do zorro até um galeto assado. cadê uma rede de bar & lanches pra abrir uma cadeia de padocas na gringa? iria enricar fácil.
e por último, o maior dos tesouros nacionais, maior que samba, novela e a bunda da anitta: o marmitex. meu amigo, aquela embalagem de alumínio, metade é arroz e a outra metade é feijão, macarrão com extrato, banana frita, verdura cozida, milho refogado, farofa, três tipos de carne - churrasco, linguiça e um franguinho no molho - que o brasileiro desconhece miserinha, o negócio aqui é fartura.
o negócio fica tão cheio que precisa de uma prensa pra ajudar a fechar. é a melhor comida do mundo prensada. eu vou até repetir: prensada. a comida de cima vai molhando e enchendo de sabor o arroz, quando você abre pra comer, já misturou tudo. pra fechar com chave de ouro, um potinho com salada e um pedacinho de rapadura. você que vive no brasil: valorize o marmitex. você não sabe o quanto isso vai fazer falta se você resolver morar fora.
sem trilili, sem emoção
eu voto desde 2000. me lembro como se fosse ontem a primeira vez que eu ouvi o trilili da urna eletrônica. sim, a urna está entre nós há bastante tempo e eu tenho uma memória vasta de como eram as eleições antes dela, no papel. desvio de votos, falsificação, o voto atrelado a um patrão, todo tipo de fraude. só lunático pra pensar que era uma coisa confiável. o sistema de votação no brasil com voto eletrônico é pioneiro e inovador de tantas formas que em vez de celeuma, devia dar é orgulho.
ano passado votei aqui na argentina (estrangeiros com residência permanente podem participar das eleições locais). sabe como é o sistema? você se apresenta, passa por um stand com folders dos candidatos, escolhe o que tem o nome do seu e deposita na urna. sem trilili, sem emoção. e meio zoneado, pra falar a verdade. e nos eua que é um cartão perfurado? sério, se o furo sair um pouquinho do rumo, já não dá pra saber pra quem foi o voto. papelzinho furado desde sei lá quando. já no brasil é auditado, seguro e rápido. dá pra saber no fim do mesmo dia se a cerveja é pra comemorar ou afogar a mágoa.
eu adoro votar, mas faltei em 2018 pela primeira vez, naquela votação que fez um corte no peito do país e arrancou nosso coração pra fora. como doeu e foi difícil viver com esta falta. neste ano eu vou votar de novo, para presidente, que felicidade. que louco saber que estamos tão perto de sair de um grande pesadelo. um sonho tão bom, tão perto, tão possível. neste domingo, vem também pras urnas, vamos fazer do primeiro turno o único turno possível. vote com vontade, pra decidir o jogo sem prorrogação.
resumindo, se eu puder te pedir algo é isso: valorize o seu voto. e o marmitex.
TOP 10
coisas que, neste momento, me dão orgulho de ser brasileiro
urna eletrônica
zé gotinha
a toalha do lula (mais até que o próprio lula)
turma da mônica
pamonha
ludmilla cantando pagode
drauzio varella
gil do vigor (minha subcelebridade preferida)
versões em forró de hits internacionais
padre julio lancellotti
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Entendo seu aborrecimento com os estereótipos relacionados ao Brasil. Mas, pensando bem, que país não é estereotipado por estrangeiros? Aos olhos dos outros, cada um é como uma grande novela da Glória Perez, com bordões no idioma local e dancinhas no meio da rua em horário comercial.
Imagina o que não deve ter de mexicano injuriado com a mania de acharem que seu país se resume a sombreros, mariachis, Chaves e novelas do SBT? Quando a gente fala em Alemanha, não pensa logo naquele homenzinho vestido, como chamamos, de "tirolês" (embora o Tirol de verdade fique uma parte na Áustria e outra na Itália) comendo salsichão e bebendo cerveja? E a Índia então, meu Deus?
No Brasil imagino que esse estereótipo aborreça mais por ser um país de dimensões continentais, com uma cacetada de peculiaridades regionais - algo que não rola em, sei lá, Andorra. E eu compreendo que o seu senso de pertencimento não seja completo porque o Brasil de onde você vem não está contemplado nessa imagem internacional do país. Nesse "recorte", como você diz.
Compreendo porque morei mais da metade da minha vida no interior e sei que existe um outro Brasil bem diferente, embora hoje eu more a duas quadras da praia (onde não ponho o pé na areia, mas caminho no calçadão) e esta seja pontilhada de barraquinhas de água de coco - e, sendo assim, o Brasil do estereótipo hoje me seja bem mais palpável. Mas olha o tamanho do litoral desse país, querido! Vê se os gringos não vão babar num negócio desses?
Bom voto no domingo!
Bjos!
Marmitex, melhor que tanta coisa! Ainda mais se for marmitex de jantinha, com tropeiro, mandioca cozida, farofa, espetinhos, arroz, couve, batata frita. Esperança para domingo, vamos!