a saudade é um prego
#119 - não confunda: apesar de serem feitas da mesma matéria, nostalgia é bolha de sabão e saudade é mar aberto.
olá vocês!
há uma semana chegou uma mensagem pelo facebook de uma antiga amiga do colégio: “oi tudo bem? estamos pensando em fazer um grupo dos formandos de 1997, quer participar?.” meu primeiro pensamento foi dizer que não. e motivos não faltaram. grupos de whatsapp são uma fonte de irritação pra mim, eu não sou o mais participativo, silencio tudo, não leio quase nada e depois de um tempo só saio, sem maiores explicações.
mas a minha amiga tinha sido tão simpática que pensei “ok, não custa nada fazer uma ronda de me atualizar da vida de cada um, dar um resumo de como tá a minha e sair.” pensava mandar uma mensagem fofa: “amei ver vocês, vou ter que sair, sabe como é, não tenho muito tempo para trocar mensagens. mas vamos manter contato, quero ver vocês quando for ao brasil”. uma mentira em cada oração e depois tchau, abraços. mas aconteceu alguma coisa ali no meio que sem ver eu fui ficando.
anteontem fui ver divertidamente 2. há um chiste em que a nostalgia invade a central de sentimentos da jovem riley e os outros sentimentos a mandam de volta, porque ela está algumas décadas adiantadas. acho que agora aos 40 a nostalgia tem tomado conta da minha mente. porque na verdade eu gostei de falar com gente com quem eu não tinha contato há tanto tempo. rever as fotos antigas, relembrar os passeios, festinhas, jogos e paqueras foi realmente muito bom, curou alguma parte minha que sente muita dor pelo passado.
agora estão planejando um encontro para agosto e eu estou verdadeiramente triste de não poder comparecer. estou surpreso comigo mesmo, eu seria amigo destas pessoas que, ainda por cima parecem que são tão legais quanto a época do colégio. eu passei por muitas escolas na minha vida, mas por esta turma eu tenho um carinho especial.
eu sempre fui muito tímido, retraído, meio bicho do mato e não fazia amigos na minha infância e pré-adolescência. mas na sétima série aconteceu algo que mudou a minha vida. minha família mudou de bairro e meu irmão repetiu de ano e a gente passou a estudar junto. o dedé é o carisma em pessoa, do tipo que onde vai todo mundo cumprimenta e trata bem. e por ser irmão dele, as pessoas passaram a querer ser minhas amigas também, até me deram um apelido, didi.
foi nesses dois anos que eu saí do casulo, desenvolvi algumas habilidades sociais, beijei garotas e fiz amigos. então é claro que é bom ter contato com pessoas que estiveram presentes neste momento importante da minha vida. mas sendo bastante sincero, é um passado do qual não tenho saudades, e não voltaria de jeito nenhum para viver tudo isso de novo. eu estou ciente que sim, apesar de tudo houve coisas incríveis na minha vida. mas esse “apesar” não compensa o que foi o “tudo”.
eu tenho nostalgia da turma da escola porque foi um recorte no tempo e no espaço que me pertenceu e a qual que pertenci. seria lindo ver estas pessoas, conhecer as famílias que formaram, ser apresentado às suas versões adultas, ver se sobra algo dos tempos antigos, algum brilho no olho, algum resquício dos sonhos que compartilhamos. mas só até aí. há uma parte de mim que é resistente a qualquer tentativa de romantização do passado.
o mundo parecia melhor porque eu era mais ingênuo e tinha esperança que coisas impossíveis podiam acontecer. mas a realidade é que a eu era muito pobre, com muitas carências, pai ausente, mãe sobrecarregada e ainda tinha todo o peso de tentar esconder a todo custo minha orientação sexual (que eu nem entendia muito bem) e o fardo de uma culpa cristã que eu não fiz nada para merecer, mas carregava por medo de ir para o inferno.
assim, por mais carinho que eu tenha por passagens da minha infância, eu prefiro viver o agora. sério, eu pagaria para ir num lugar que tocasse todas as músicas da minha festa de formatura (de cachimbo da paz do gabriel o pensador a uh lalalá da alexia). mas a coisa que eu mais desejei na minha adolescência era ser adulto. e é o que eu sou agora. cada dia que passa eu sou mais adulto e por tanto, mais realizado.
não que não haja espaço para saudades. veja bem, eu migrei e deixei metade da minha vida em outro país. tenho saudades todos os dias dos meus pais, dos meus irmãos, dos meus sobrinhos, dos meus amigos. tenho saudades da minha avó que morreu há seis anos. saudades do meu tio juca, da luana, gente que não está a uma mensagem de distância. saudade dói.
nostalgia não é saudade. a gente confunde porque talvez sejam feitas da mesma matéria. mas não se engane, elas possuem pesos, profundidades e intensidades diferentes. ter nostalgia é brincar com bolhas de sabão, ter saudade é nadar em mar aberto. nostalgia é uma cosquinha, saudade é uma voadora no meio do peito. se eu tivesse uma máquina do tempo não era com minha turma de escola que eu queria estar. eu daria um último abraço na minha avó.
martha medeiros tinha razão ao dizer que a saudade é a dor que dói mais e o chico buarque a definiu como o pior castigo. e rionegro e solimões resumiram numa das melhores analogias da música brasileira: “a saudade é um prego e o coração é um martelo”. saudade é tudo isso e muito mais, mas é parte da vida, sinaliza que algo segue presente na ausência.
eu não vejo como eu seria a pessoa que eu sou sem ter amado as pessoas que eu amo, então sofrer saudade é um preço razoável por ter elas em minha vida. neste ponto, talvez a definição mais certa seja a de peninha: “saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio”.
e quanto à nostalgia, é bom visitar nossos “eus” do passado, ver como crescemos, como nos viramos com o que havia à mão. é bom lembrar de amigos distantes pra se lembrar da gente mesmo. me emociona ver aquele menino desajeitado, inseguro, que se sentia inadequado. agora eu posso ser gentil, dar um abraço nele e sair feliz por saber que ele sobreviveu.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
a recém-expatriada aqui ficou emocionada com esse texto. obrigada!
quem tem o privilégio de viver a vida de adulto como quer sabe bem como é essa dorzinha que fica lá no fundo do peito... estamos onde queremos estar, mas também sentimos falta do que deixamos pra traz. linda reflexão