a lei do desejo
#129 - a gente nasceu pra querer da vida, independente do que a vida tem para nos dar. quem deseja não morre.
olá vocês!
comecei a ler o último livro do pedro almodóvar, o último sonho, e logo na introdução ele fala sobre como o filme um bonde chamado desejo impactou a sua vida e obra. de fato o longa de elia kazan baseado na peça de tennessee williams é uma citação recorrente em filmes do diretor espanhol. ele até batizou a sua produtora de el deseo sa. fiquei com esta informação na cabeça e comecei a pensar na palavra e no próprio conceito de desejo. de vez em quando viajo numa palavra e vou longe.
no começo do ano passado, eu tive um pico de depressão e foi um dos períodos mais sombrios que eu já experimentei. um breve contexto: eu havia acabado de me casar, viajamos para a patagônia de lua-de-mel, tinha me mudado para um lugar mais aconchegante, estava começando uma nova família. no trabalho me elegeram most valuable person naquele mês. parecia final de novela, tudo dando certo. e uns dias depois, eu caí feio, não tinha vontade de fazer nada, queria me isolar, dormir e não acordar nunca mais.
como já tinha passado por aí antes, dessa vez eu decidi lutar contra o abismo com todos os recursos que tinha à mão e fui fazer terapia. e com a ajuda, eu consegui elaborar o que estava sentindo. eu passei a vida toda lutando para sobreviver e quando finalmente eu senti um gostinho do que é ter sonhos sendo realizados, me deu uma pane no sistema. me deu pânico ser feliz para sempre. com leitura, terapia e uns remedinhos, as coisas foram voltando para o lugar, eu convenci minha mente que aquilo não era real, era sensação. e que eu podia aproveitar os momentos bons da vida, porque logo logo viriam outros desejos: ser pai, comprar um carro, viajar pelo mundo. só estava começando.
o desejo é um tema amplamente estudado por diversas disciplinas, como filosofia, sociologia, antropologia e psicanálise, e não tem uma definição única. por exemplo, aristóteles o vê como um movimento da alma em busca de algo que falta, enquanto a psicanálise o define como um impulso inconsciente que orienta nosso comportamento e relação com o mundo. quando eu falo aqui de desejo, eu pretendo me referir a esse movimento em busca do que falta e desse impulso. eu sei que a gente usa desejo para falar de tesão, mas aqui eu quero falar é dessa chama que inquieta e nos faz mover como lombrigas em lua nova.
o desejo, diferente do querer consciente, está profundamente enraizado no inconsciente e é influenciado por fatores instintivos. e ele não é fixo, vai mudando conforme nossa experiência de vida, nossos valores e a influência da sociedade. o que o desejo acha certo nem sempre é o que o senso comum acredita. o anseio individual pode inspirar o coletivo e o contrário também se dá. por isso há grandes levantes de tempos em tempos em torno de um ideal comum. mulheres desejando autonomia sobre seus corpos inspira outras a lutarem junto.
o desejo pode ser influenciado por normas sociais e morais, levando algumas pessoas a reprimi-los. no entanto, compreender e trabalhar esses desejos reprimidos é crucial para a saúde mental. é preciso lidar bem com eles porque desejar é condição indispensável para estar vivo. e quando eu digo lidar é entender e enfrentar, não realizar, porque né, tem desejo macabro, destrutivo, nocivo para si mesmo e para os outros. e é importante também encarar eles não como fuga da realidade, mas como uma forma de se construir e se perceber. o que queremos é um reflexo de quem somos.
sabe na música amor I love you quando o arnaldo antunes recita “tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente, era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades e seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira por um banho tépido…”? então, neste trecho d’o prímo basílio, eça de queiroz descreve como o desejo pode mudar totalmente o estado de espírito de luisa, a personagem principal. ela quer roçar a calabresa do amante? claro, mas na verdade ela deseja mesmo é viver outra vida, com mais possibilidades que as que lhe foram dadas.
eu ainda estou matutando sobre o tema, acho que não existe um grande consenso de nada. o arrombado do sêneca, um dos principais filósofos do estoicismo, defendia a ideia de “desejar não desejar”, pois acreditava que quanto menos desejos uma pessoa tivesse, menos sofreria. ele via a velhice como a melhor fase da vida, porque os idosos não eram mais prisioneiros de certos desejos, como os sexuais, que aprisionavam os jovens.
o oposto disso vem dos titãs, no musicão comida, que usa a fome como partida para falar do que desejamos, temos necessidade e vontade. são três instâncias distintas, mas que a fome engloba em si: o corpo necessita comer, a mente tem vontade de sentir o sabor e a alma instintivamente tem o desejo de seguir viva. para os titãs, o desejo é tudo. mais do que só comer e beber, desejamos também diversão, arte, o direito de ir e vir (“a gente quer saída para qualquer parte”), prazer e autonomia (“a gente quer a vida como a vida quer”).
nessas eu fico com o eduardo galeano. em as palavras andantes ele diz: “a utopia está lá no horizonte. me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. para que serve a utopia? serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”1 troca utopia por desejo e é isso aí.
claro que quem deseja não morre, mas vive o risco de ver seu desejo frustrado. mas é aí que tá o pulo do gato, a gente nasceu pra querer da vida, independente do que a vida tem para nos dar. você quer aquele horizonte lá longe, a vida te oferece algo aqui pertinho. aí vocês negociam uma distância intermediária e um tempo depois você vai querer outro horizonte ainda mais longe que o primeiro. viver é isso, barganhar horizontes.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
na verdade, neste trecho, galeano está citando uma conversa que teve o cineasta argentino fernando birri a quem ele atribui a frase.
viver é nunca parar de desejar
Que edição linda Júnior, obrigada por isso!!