enche o tanque, por favor
#135 - ao contrário da vida, nada é fugaz na obra de antonio cícero, criador de algumas das melhores canções pop das últimas cinco décadas.
olá vocês!
morreu o poeta e filósofo antonio cícero e sei hoje mais sobre a sua morte do que sabia sobre a sua vida. não há como ficar indiferente quando alguém escolhe sair de cena com a dignidade a que poucos podem ter acesso. entender que a vida é fugaz e saber evitar um fim em que estaria a mercê de uma doença degenerativa é uma coisa que todo mundo gostaria, seja ateu ou religioso. e tão grande quanto sua obra foi sua coragem diante de algo que, aos poucos, matava sua capacidade de criar um mundo por meio da palavra.
sobre sua vida eu sabia muito pouco, mas sei de sua obra desde o dia em que caiu em minhas mãos o livro veneno antimonotonia, uma coletânea de poemas e canções de vários autores, organizada por eucanaã ferraz. ali, entre poemas de joão cabral de melo neto, manuel bandeira, cazuza, ana cristina césar e adriana calcanhotto, descobri que algumas das canções de marina lima que tanto desnudavam minha alma adolescente eram escritas por cícero.
mais tarde, descobri que ele e marina eram irmãos e que ele era responsável tanto por músicas da cantora quanto de outros gênios do pop dos anos 80 pra cá. com adriana calcanhotto escreveu inverno, com lulu santos, o último romântico, e entre tantas outras parcerias, eu destaco os ilhéus, poema de cícero publicado em a cidade e os livros e musicado por josé miguel wisnik em seu álbum indivisível. é uma das coisas mais lindas que existem, recomendo.
no meio dos anos 70, a caçula dos correia lima se apropriou de um poema do irmão, 10 anos mais velho, alma caiada. esta primeira parceria foi gravada por maria bethânia e proibida pela censura. desde então eles nunca mais pararam de produzir canções, a maioria imortalizada por marina: virgem, charme do mundo, deixa estar, à francesa, entre tantas. mas para mim, o ponto alto desta farta colheita é fullgás, canção que dá nome ao álbum de marina lima de 1984.
muito já se escreveu sobre o poeta e filósofo e sua contribuição para a música brasileira, então, em forma de homenagem a cícero e marina, queria exaltar esta canção, um das grandes composições do pop brasileiro. é uma daquelas músicas a qual ninguém fica indiferente, das que a gente aumenta o volume quando toca na rádio e canta junto, mesmo quando estamos presos no trânsito e faz um calor danado lá fora.
é das que a gente repete quando toca no spotify, pra poder ouvir melhor da segunda vez. daquelas que, por mais chato que seja o cantor do barzinho, a gente interrompe o papo e a cerveja pra poder ouvir melhor quando ele canta. e troca um olhar meio cúmplice com ele, meio que dizendo “essa aí é muito boa, hein”. é aquela inevitável nas festas temáticas dos anos 80, que transforma a pista num karaokê, em uma celebração nostálgica de um tempo que não passou totalmente.
lançado em 1984, o álbum fullgás é cheio de hits e representou um grito de liberdade coletiva e individual. no contexto político, o brasil clamava por eleições diretas e caminhava para o fim da ditadura militar. e marina lima queria se afirmar como uma cantora pop, rompendo as convenções da mpb e as categorizações do mercado e dialogando com seu tempo.
o álbum em vinil trazia no encarte um manifesto, assinado pelos irmãos, em que se definem como “brasileiros e estrangeiros”, afirmando que “a casa da nossa música não tem paredes, nem teto”. eles também criticavam a rigidez que impõe uma pretensa “pureza” à música nacional e reafirmam seu compromisso com o presente: “queremos descobrir novas possibilidades não de fazer arte, mas de viver”. 40 anos depois e o manifesto fullgás segue mais atual e moderno que nunca.
o duo ainda afirmava que sua música era deliberadamente simples e direta, e por isso mesmo, tão difícil para quem estava acostumado às velhas formas de se fazer música. “sabemos que somos superficiais demais e profundos demais para essa gente”. não sei se foi de maneira consciente, mas aqui eles definiram como foi a obra feita pelos dois, juntos e separados: músicas feitas para as massas, mas com uma riqueza delicada de signos e significados que levam horas para serem dissecadas.
fullgás, a canção, leva no título um trocadilho. em vez de fugaz (ligeiro, efêmero), o neologismo significa algo quase inverso: em inglês, full gas significa abastecido, de tanque cheio. é uma música sobre o amor e a capacidade transformadora que uma pessoa pode exercer na vida da outra. a letra sugere que o ser amado é a fonte de inspiração e vitalidade, evocando a ideia de algo vivo, poderoso e que te abastece de energia.
musicalmente, é importante destacar as linhas de baixo e os riffs dos sintetizadores ao longo de toda a canção, uma coisa modernérrima naquele então e que segue agradável de ouvir até hoje. e como escritor, cícero era um artista econômico, que trabalhava com imagens, versos simples e frases curtas. e nada de refrão, no máximo uma subida de acorde na segunda parte da música, que é quando quando a gente passa de dançar somente movendo os pés para cadeiras totalmente livres e frenéticas.
o verso que abre a música já dita todo o tom: “meu mundo você é quem faz”. é uma declaração perigosa, emocionada, mas totalmente compreensível em casos de paixonite aguda. quando a gente está amando, o ser amado cria uma nova realidade na vida da gente. e provoca movimento, poesia e alegria, ou seja, “música, letra e dança”.
e eu gosto do verso “pois tendo você, meu brinquedo, nada machuca nem cansa”, uma forma de dizer que mesmo com toda a intensidade do sentimento, ela sabe que é algo leve e divertido. e eu ouso dizer que não somente o amor novo, mas a música pop também pode ser um brinquedo, poruqe dançando ao som de canções alegres, nada machuca nem cansa.
a preocupação com a possibilidade de perda aparece na parte "então venha me dizer o que será da minha vida sem você", evidenciando a dependência emocional do eu lírico em relação ao seu amor. e claro, há um mundo terrível acontecendo lá fora: “noites de frio, dia não há. e um mundo estranho a me segurar”. é mais uma das provas da capacidade deles de criarem imagens em seus versos. a gente sai de um estado de alegria pleno para um ambiente inóspito só de imaginar a ausência da pessoa querida.
e para uma música que começa com um verso poderoso, nada melhor que terminar com uma frase que virou uma frase de ordem: “você me abre seus braços e a gente faz um país”. num país polarizado e cheio de ódio, este verso representa a força do amor e da união. é um desses versos que mesmo isolados de seu contexto seguem plenos de sentido.
cícero viveu e escreveu sobre o amor e ao lado da irmã, foram fundamentais para a comunidade lgbt+, não somente com suas vivências como um homem gay e uma mulher lésbica, como também com letras que evocam amores livres de amarras e sexualidades livres de culpa.
cantar fullgás a qualquer momento é reconhecer que amar é um ato festivo e político. cantar esta música hoje também é celebrar a vida pulsante de um poeta que entendeu que a música pop não é uma arte menor, e que embalou as nossas vidas em tantos momentos. viva cícero, viva a poesia!
em tempo: a
não somente escreveu lindamente sobre o antonio cícero como criou uma playlist com todas as suas colaborações para a música brasileira. leia e assine sua newsletter, é uma delícia.e sobre a criação poética de cícero fora da área musical, eu amo particularmente o poema guardar, do livro de mesmo nome. deixo aqui a deusa fernanda montenegro recitando o poema pra vocês:
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
baita poeta foi antonio cícero!
Linda homenagem em forma de crônica ao Cícero. Fullgás realmente é um hino de amor à abertura e à experiência. Virgem também é aquela coisa perigosa e um hino ao Rio de Janeiro. Belíssima. Abraço.