what’s new, buenos aires?
#156: uma viagem por canções que transformam a cidade em personagem: amada, contraditória, furiosa, nostálgica e sempre sonora.
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olá vocês!
quem segue esta página há um tempo já sabe que de vez em quando rola uma lista de músicas. e adivinha só? hoje tem playlist sobre buenos aires. e falar de da capital argentina é, inevitavelmente, falar de drama. e onde há drama, há tango — esse gênero que fez da dor uma arte maior e da cidade, um palco eterno de despedidas, reencontros e paixões desesperadas. mas limitar a argentina ao tango seria como dizer que o rio de janeiro é só bossa nova ou que goiânia é apenas moda sertaneja.
buenos aires pulsa ao som de muitas batidas: há a cumbia que explode nos bairros populares, a zamba que evoca paisagens do norte, as danças folclóricas que resistem no interior e, claro, o imbatível rock nacional dos anos 80, que deu voz a uma geração entre ditaduras, silêncios e rebeldias. a cidade, em sua complexidade sonora, é cantada de todos os jeitos e é sobre essas canções que vou falar aqui. esta buenos aires, com suas esquinas cheias de histórias e seus céus carregados de nostalgia elétrica, é mais que cenário: é personagem, musa, conflito e consolo. a cidade inspira canções que não apenas a retratam, mas a decifram (ou ao menos tentam).
para começar, vamos de gardel, claro. há quem diga que o lendário cantor de tangos nasceu em toulouse, na frança e tem que jure de pé junto que ele é uruguaio. mas ninguém pode negar que ele é mais argentino que o mate com bolachas. em mi buenos aires querido, ele canta a cidade como um refúgio idealizado, um lugar de reencontro e redenção: “cuando yo te vuelva a ver, no habrá más pena ni olvido”. o tango dá à cidade uma dimensão de mito pessoal, um território emocional onde o passado e o desejo se fundem em melodia. buenos aires aqui é doce, eterna, saudosa. uma cidade que existe talvez mais dentro do peito do que no mapa.
mas nem todo mundo canta a cidade com ternura. em la ciudad de la furia, o soda stereo a transforma numa entidade sombria e pulsante. “me verás volar por la ciudad de la furia” soa como uma profecia urbana. a buenos aires de gustavo cerati é noturna, frenética, quase apocalíptica. o eu lírico é um fantasma moderno, vagando entre prédios e desejos não resolvidos. um corpo que flutua sobre um asfalto emocionalmente tóxico. andrés calamaro segue na mesma trilha nublada com no tan buenos aires, onde já no título deixa claro: “no hay buenos aires en buenos aires”, canta ele, como se a cidade tivesse se tornado uma memória distante, irreconhecível, talvez hostil. buenos aires como exílio dentro de casa.
e para seguir com genios do rock e canções reflexivas, luis alberto spinetta oferece um olhar mais metafísico em buenos aires, alma de piedra. aqui, a cidade tem uma alma mineral, resistente e silenciosa. uma presença que se impõe sem alarde, onde o concreto guarda segredos e a poesia brota das rachaduras. já fito páez, em el diablo de tu corazón, traz buenos aires como pano de fundo de um amor incandescente. a cidade aqui é cenário de paixão e caos, onde o emocional se mistura ao urbano em ondas que arrastam: “buenos aires hoy te falta mambo, sobra muerte y passarella”.
sweet home buenos aires, colaboração de javier calamaro, los guarros e charly garcía, é uma mistura de pertencimento e ironia. é uma paródia de sweet home alabama, de lynyrd skynyrd só que em vez de louvar, enumera as contradições de uma cidade caminhando trôpega entre o encanto e a decadência. também do gigante charly garcía (pra mim, o maior poeta da música argentina) tem a canção no bombardeem buenos aires, um grito de protesto, retratando uma pelo medo em plena guerra das malvinas. a canção mistura crítica política e tensão urbana, com “pibes” que olham o céu temendo bombardeios e buscam alívio ouvindo the clash. é a buenos aires assustada, vulnerável, onde o rock funciona como grito e refúgio diante do absurdo.
sem querer esta lista acabou virando uma enciclopédia do rock argentino. mas é que eu amei demais conhecer este movimento, sobretudo nos primórdios dos anos 80. é meio gêmeo do rock brasileiro da mesma década, apesar de uma barreira linguística, é possível ver que possuem raízes comuns e emanam sons parecidos, seja na sonoridade, seja nos temas.
e pra fechar o combo roqueiro, mas desta vez nos anos 70, tem a banda manal com avenida rivadavia, que nos leva por uma das artérias mais extensas da cidade. a canção é urbana, crua, com espírito de blues portenho. rivadavia é mais que uma avenida: é a espinha dorsal do cotidiano, onde a cidade se mostra em sua plenitude — barulhenta, viva, cansada e cheia de histórias em trânsito. curiosamente, o primeiro lugar em que eu morei em buenos aires foi um hostel na avenida rivadávia. e logo aprendi que ela é tão central para a cidade que todas as ruas que a cruzam mudam de nome em seguida. o que obriga a gente a aprender quase o dobro de nomes de ruas e avenidas.
felizmente, nem todo retrato musical da cidade é carregado de sombras, existem músicas fofinhas aqui, e eu destaco duas. Em cabildo y juramento, da banda conociendo rusia, temos uma buenos aires afetiva, cotidiana, feita de encontros em esquinas que carregam o peso simbólico de destinos entrelaçados. É o bairro de belgrano cantado como se fosse o coração do mundo. e primavera, interpretada por ainda dúo com o meu marido jorge drexler, traz uma buenos aires mais sensorial e solar. Uma cidade que se renova, onde os sentimentos florescem entre cafés e jacarandás. eu recomendo que você pause este texto e dê play no clipe da música em que a cidade aparece em cenas cotidianas exalando ternura.
e pra quem acha que só tem música velha por aqui, a diva nathy peluso aparece para entregar outra canção chamada buenos aires. o comecinho é quase um mantra meu quando o inverno vai chegando: “me empeza a molestar que haga frío en la ciudad”. é uma canção intensa, onde a cidade é espelho e abismo, um lugar que acolhe e confronta. melancólica, mas ainda assim belíssima, a canção é um quase um manifesto contra a solidão. o que eu já chorei ouvindo esta aqui na pandemia não tá escrito. “conozco esta pesada sensación de soledad, pero, ¿a quién esperamos. melancolia barata en la televisión, ¿adónde va eso que rezamos?”.
e então há aquela canção que talvez os argentinos torçam o nariz, mas que precisa estar nesta lista por razões muito pessoais: buenos aires, cantada por madonna no filme do musical evita. apesar das controvérsias em torno da representação hollywoodiana da história argentina, foi essa música que eu cantava mentalmente, sem parar, na minha primeira caminhada pelo microcentro. “what’s new, buenos aires?” perguntava ela, e eu, recém-chegado, olhava para cima tentando encontrar uma resposta entre os prédios e os pombos da plaza de mayo. de vez em quando ainda me pego andando pela cidade e cantarolando “stand back, buenos aires! you oughta know whatcha gonna get in me just a little touch of star quality”.
buenos aires é tantas quantas forem as canções sobre ela. querida, furiosa, contraditória, ela vive nas letras e melodias que a celebram ou que a suportam. como toda grande cidade, nunca é uma só. talvez por isso mesmo, eu nunca me canse de ouvir sobre ela.
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júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
Confesso quem vindo de uma cidade maior e com problemas mais complexos, acho meio engracado o apelido de ciudad de la furia haha e também já tive a Avenida Rivadavia como endereco!
eu adoro playlists temáticas! e acho incrível como muitas cidades são cantadas de tão diversas formas.