um relicário imenso deste amor
#106: lembrar é um ato político. quem não conhece o próprio passado está condenado a vê-lo repetir uma e outra vez.
olá vocês!
“sem memória não há identidade”, diz a dedicatória de augusto em um livro que ele deu de presente para sua mulher paulina há mais de 20 anos, quando eram namorados. estamos quase no final do documentário chileno memória infinita e ela agora lê para ele a dedicatória, em uma cena emocionante e singela:
“sem memória, divagamos desconcertados sem saber para onde ir. (…) não lembramos para ficar ancorados no passado, muito menos para abrir a ferida ou despertar a dor adormecida. este livro só tem objetivo se a memória nos ajuda a recobrar a nossa própria identidade e a reconhecer a verdade, sem a qual não há reconciliação nem reencontro.”
antes desta cena, acompanhamos em cenas de flashback como augusto góngora foi importante e ativo na luta contra a ditadura no chile, denunciando os as violações dos direitos humanos e a repressão política causados pelo regime que se abateu sobre o país entre os anos de 1973 e 1990.
o filme, que concorreu ao oscar de melhor documentário neste ano, é uma pequena jóia. no chile, bateu de frente e ganhou de barbie e oppenheimmer na semana de estréia. o cinema chileno como um todo tem sido uma fonte de agradáveis surpresas. e o documetário da diretora maite alberdi, conhecida pelo ótimo documentário agente duplo, mergulha na intimidade do casal augusto e paulina em um relato comovente sobre os sentimentos que persistem no âmago da identidade de uma pessoa que vê sua memória desvanescer a cada dia um pouco mais.
a história de augusto e paulina é uma crônica diária do casal nos últimos anos de vida, entremeado por cenas de flashback tanto da vida pública quanto de sua juventude do casal, resultando um filme é lindo e dilacerante. é impossível de não se emocionar com a força dessa história de amor. eu mesmo chorei pra base de umas quatro vezes ao longo do filme.
jornalista de profissão, augusto passou a vida cobrindo os abusos dos direitos humanos cometidos pela ditadura de outro augusto, o pinochet, e os compilou em diversas publicações ao longo dos anos. parte da sua preocupação era não esquecer o sofrimento daqueles que perderam entes queridos e a dor causada pelas mortes de compatriotas que se opuseram ao regime militar.
lembrar é um ato político. quem não conhece a própria história está condenado a vê-lo se repetir uma e outra vez. ironicamente, a memória de augusto o abandona, colocando à prova o amor de sua família em um dos momentos mais sombrios de sua vida. em 2014, aos 62 anos, o jornalista foi diagnosticado com alzheimer, uma doença que o corroeu gradualmente até sua morte em maio do ano passado.
é de uma coincidência atroz que tanto augusto quanto paulina sejam pessoas públicas, que viveram de construir memórias em outros. ele, como já dito, jornalista e ativista político. já ela é atriz de teatro, tv e cinema e nos anos 2000 foi ministra de cultura do chile. é um casal em perfeita sintonia. juntos, criaram memórias próprias e coletivas. e são elas que tornam o filme inesquecível, se me permitem o trocadilho.
o meu rio particular de lágrimas fluiu mais quando pensei que, ao perder a memória, ele perde sua própria versão da história. e caba a paulina lembrar por ambos e emprestar a ele a visão da história dos dois que antes era só dela. porque as pessoas lembram de um mesmo evento de maneiras diferentes. a memória é capaz de nos enganar ao dar cores, sons, sensações e luzes que na lembrança são ligeiramente diferentes do que de fato aconteceu. já aconteceu de você estar seguro de ter vivido algo na infância e seus pais afirmam que foi diferente?
é desesperador ver aquele homem outrora tão lúcido e eloquente se perder em um buraco negro. e é triste perceber como a perda das lembranças de augusto entristecem a paulina, que agora cuida sozinha do relicário de recordações daquele amor. é lindo ver que, mesmo com os fatos fugindo dos trilhos, ele não duvida nunca do amor que ele sente por aquela mulher, mesmo que nem sempre saiba quem ela é. e é alentador saber que o sentimento persiste para além das recordações. amar também é político.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Dica anotadíssima, que me fez lembrar do ótimo museu da memória e dos direitos humanos em Santiago.
nossa