sobre meninas e lobas
#103: pobres criaturas não responde às questões que levanta, mas abre muitas janelas para que cada um tire suas conclusões
olá vocês!
amala e kamala foram duas meninas encontradas vivendo com lobos na índia em 1920 por um reverendo chamado joseph singh. contava-se que haviam sido abandonadas por suas famílias e adotadas por uma loba. seus comportamentos eram animalescos, e elas não falavam. apesar dos esforços para reintegrá-las à sociedade humana, elas não se adaptaram completamente e tiveram vidas curtas, com amala morrendo em 1921 e kamala em 1929. seu caso despertou interesse e debate sobre a natureza humana e a capacidade de socialização.
pensei muito nesta história depois que vi o filme pobres criaturas, de yorgos lanthimos, em que uma mulher morta recebe o cérebro de seu bebê e é criada por um cientista, para estudar como se comporta um ser humano adulto com uma mente “selvagem”. como a vida real pode ser bem mais cruel que um filme de hollywood, se soube tempos depois que a história dos lobos era mentira. as crianças possuiam retraso mental e singh as torturava para que agissem de forma animalesca. o objetivo dele era impressionar as pessoas e ganhar patrocínio para publicar estudos sobre essas “pobres criaturas”.
fui ver o filme estrelado por emma stone com zero informações para além de que era um “frankenstein feminista” for wathever that means. esperava um suspense chocho e me surpreendi muito (e positivamente) com o que vi. saí do cinema com um caminhão de questionamentos morais e filosóficos e buscando o sentido da vida. vou tentar resumir o filme pra quem não viu: em uma londres vitoriana porém futurista, bella (emma stone) vive com um cientista, dr. godwin (a quem chama de god). como já disse, ela possui um cérebro de bebê e ao longo do filme vamos acompanhando seu crescimento intelectual passando por descobertas do prazer, da beleza, da miséria humana e da violência.
bom, vai ter spoilers, sinto muito. bella viaja pelo mundo (leia-se: três cidades da europa), desde uma idílica e barroca lisboa, passando por uma absurdamente pobre alexandria até uma temporada em paris, onde ela decide se prostituir para ter acesso a sexo e dinheiro. o comportamento da personagem evolui dos trejeitos de um bebê ás angústias de uma mulher adulta.
é um bom filme, salvo uma deslizada ali no meio e o final otimista demais para o tom do resto do filme. acho que a proposta de colocar uma pessoa desprovida de qualquer moral para sair pelo mundo experimentando e reagindo a tudo que a vida lhe propõe é um grande feito. assim, a obra questiona tabus e costumes quases escritos na pedra de tão arraigados. o filme não traz respostas para as questões que levanta e está tudo bem, eu gosto das janelas que ele abre para que cada um tire suas conclusões.
já a parte da prostituição achei uma solução simples demais, quase mágica. a narrativa era bastante rica e cheia de nuances e, neste ponto, pareceu pouco criativa. talvez (e é uma opinião minha), ao ter somente homens no roteiro e direção, faltou um cuidado nessa abordagem. não que eu ache que a personagem não devesse ir por este caminho. não há tema que a ficção não deva abordar. a questão é como abordar e aqui o fizeram nas coxas.
para mim o tema principal do filme é como um ser livre de códigos pode incomodar àqueles que foram moldados e tolhidos com tantas regras. e sendo a pessoa em questão uma mulher, há uma camada extra que é como o patriarcado tenta a todo custo atrofiar esta liberdade.
todos os personagens masculinos tentam tirar proveito de bella em algum aspecto. o personagem de mark ruffalo é um homem que a princípio parece amar a liberdade de bella, sempre e quando essa liberdade atende a seus interesses. quando ela percebe que pode ser mais do que somente a companheira sexual daquele homem, vemos um exemplo do espécime hommus coitadus, gritando e chorando.
aliás, que bom ator é mark ruffalo, não? eu amo este homem, mas odiei cada microframe de tela que ele ocupou aqui. o elenco todo está muito bem, o oscar vai ser de emma stone (escreve aí) e capaz que o de fotografia, figurino e trilha sonora original também. já a direção vou te falar, tenho uma preguiça dos maneirismos de yorgos, aquela lente olho-de-peixe que não acrescenta nada. parece que ele está forçando uma assinatura, uma marca registrada, como wes anderson, tim burton e almodóvar.
enfim, voltando à história, a melhor parte é a tomada de consciência de bella que seu corpo e sua existência são políticos. e, mesmo bancando toda a angústia gerada por “despertar” para o mundo, começa a usufruir deste poder. por isso acho o final quadrado demais. yorgos opta por transforma-la em uma boa menina, que perdoa e aceita como lar as pessoas e o ambiente que a aprisionaram. a loba voltou para a jaula.
em tempo, a
, da newsletter imaginou um final bem melhor para o filme aqui:mudando de assunto
eu, assim como toda a internet, ando obcecado pelo termo “loba”, usado para se referir a mulheres maduras, fortes, predadoras e decididas. há um componente cultural na socialização de homens gays que é a total devoção a mulheres com essas características. não á toa o termo vir da música da alcione, não só a mais loba que temos, como também uma mulher-viado por exelência.
a música loba é um hit, obviamente. mas como nesse canal nós veneramos a musa, vou aqui uma das melhores músicas de alcione já gravadas, a viadérrima (ler com a voz do milton cunha) nem morta, de 1985.
já que falamos em loba quero recomendar uma série de tv que eu ando vendo ultimamente. não é bem de tv, eu acompanho mesmo pelo tiktok. se chama “cortes da fernanda” e é sobre uma muher de niterói, bem poucas idéias, tendo que conviver com as pessoas mais insuportáveis do mundo.
o elenco é bem pouco conhecido, tirando uma ponta da wanessa camargo e do rodriguinho dos travessos (lembra dos travessos?). a história gira em torno da fernanda e seus embates com gente com a retórica do sérgio moro e a dicção da tatá werneck. a protagonista é uma mulher gostosa (no sentido de que é fácil gostar, não no sentido mais comum, se bem que nesse caso também, mas não é sobre isso a série. é meio ficção científica, meio the office, não sei explicar bem).
num episódio que eu vi esses dias, uma moça ficou horas ensaiando pra dar um fecho na fernanda e na hora do vamo vê ela não disse nada com nada e a loba dobrou ela e colocou no bolso. fernanda fala 82 palavrões por minuto, tem baixa autoestima e cita filmes aleatoriamente em seus diálogos. um personagem muito bem escrito e identificável. o enredo eu não entendi muito, vou ter que ver mais episódios. o último tinha um ex-apresentador do fantástico citando djavan, eu me emocionei.
fui recomendar essa série para meus amigos mas eles disseram que ela segue o bolsonaro no instagram. devem estar se confundindo, porque a fernanda não existe de verdade. ela não está aqui entre nós, é uma personagem de vídeos do tiktok. as pessoas às vezes confundem ficção e realidade.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Junior, obrigada pela citação! Adorei sua resenha e acho que complementamos as ideias do outro!
também preferi o final que a roberta deu para o filme. e tenho muitas vezes a impressão de que o orgia privilegia a forma, em vez do conteúdo. isso me dá um pouco de preguiça.