trocando em miúdos
#142 - edição especial de amigo secreto: uma defesa da comunicação simples e clara, na forma e no conteúdo
olá vocês!
este texto é uma revelação de amigo secreto. mas por favor, continue aqui, sei que amigo secreto é roubada, mas esta é uma versão realmente boa da brincadeira de fim de ano. explico: todo ano, a comunidade de escritores de newsletters eaz um troca-troca de cartas entre escritores e o presente é um texto com base na newsletter do seu amigo. eu tirei o nome do cadu carvalho, da news tipo aquilo, um espaço em que ele escreve desde 2019 sobre tipografia.
admiro a capacidade de algumas pessoas em serem constantes com suas paixões temáticas. quem me lê aqui sabe que eu não consigo manter uma linha temática. por aqui já passaram beatles, solidão, livrarias de buenos aires, marisa monte, almodóvar e gretchen. já meu amigo secreto tem um tema definido: falar de fontes tipográficas. mas se engana se acham que ele escreve sobre estilos de letras. ele escreve sobre o mundo através da tipografia.
em um texto recente, ele falou sobre design e política. em setembro, resgatou histórias de greves dos trabalhadores tipográficos. os textos são tão bem escritos e interessantes, que mesmo quem não é designer começa a ler e fica um bom tempo ali. eu mesmo sempre aprendo alguma coisa e saio como o brick, da série the middle, que era fanático por fontes.
mas o texto que motivou a escrever aqui foi um chamado linguagem simples. no texto cadu fala sobre a adoção e ampliação do uso da linguagem simples por entidades e órgãos públicos e estende o debate também para a sua área, o design.
vou confessar que tenho um grilo com a forma que o termo “simplicidade” tem sido esvaziado. tenho pavor de quem usa “simples” como eufemismo para pobre ou ignorante. tá ali de mãos dadas com “humilde” na minha lista de palavras odiosas. nada nem ninguém é simples, não tem como ser. ser complexo é parte da natureza humana e ser difícil é condição inevitável da vida. a gente pode tentar reduzir as complicações e evitar os problemas, mas estamos bem longes de ser simples. quer me ver revirando os olhos é terminar uma frase com “simples assim”.
porém, eu sou devoto absoluto de uma comunicação cada vez mais simples, clara, objetiva. e com simples não quero dizer sem estilo ou vazio de alma. pelo contrário, é muito chique: adélia prado, cora coralina e drummond escrevem coisas que vão direto ao coração, sem jamais apelar para um palavreado rebuscado. aliás, a crônica brasileira ganhou status de arte maior exatamente por ser simples e acessível. é essa a escrita que eu defendo e busco praticar.
e como jornalista, eu não poderia concordar mais contigo, cadu. a complexidade desnecessária na linguagem cria barreiras que só dificultam compreensão e diálogo. seu texto reforça a importância de priorizarmos a clareza, especialmente em um mundo onde a informação é abundante e o tempo, escasso. uma linguagem clara em forma em conteúdo pode ajudar na construção da sociedade, ampliando acessos e diminuindo ruídos de comunicação:
“em tempos de fake news, linguagem simples é uma ferramenta importante demais pra ser colocada em segundo plano: ela ajuda a criar confiança, tira a névoa das letras miúdas, do juridiquês e do discurso pomposo, e simplifica a vida de todos que dependem do texto bruto para trabalhar, como designers e tradutores.” cadu carvalho em “linguagem simples”.
e você aponta para mais longe do que eu costumava chegar, trazendo além de redatores, também designers para o centro da discussão. porque a forma também é importante. nem sempre o que parece óbvio o é para todo mundo. adotar e manter uma comunicação simples é uma escolha política.
eu, que já sou assinante da tipo aquilo há um tempão venho aqui no meu espaço recomendar aos meus cinco ou seis leitores que assinem, leiam, e espalhem a palavra do design bonito, mas antes de tudo, efetivo. viva a simplicidade!
e como faz parte da brincadeira criar algo (playlist, colagem, poema), eu crieu um conto curtinho baseado em linguagem simples, espero que goste.
palavras descalças
naquela segunda-feira, seu joão entrou no banco com o rosto franzido de dúvidas. ele segurava um papel na mão, daqueles cheios de letras miúdas e palavras compridas demais. atrás dele, dona júlia, uma senhora de cabelos grisalhos e óculos com lentes grossas, observava a cena com uma paciência inquieta. ela também trazia um papelzinho parecido, dobrado com cuidado no porta-moedas de couro.
saindo do balcão, marina e se adiantou em atendê-los, na intenção de encurtar a fila e poupar os clientes idosos: “posso ajudar o senhor?” seu joão coçou a cabeça, os dedos calosos se movendo devagar pelo couro cabeludo, como quem procura uma resposta que não vem. ele olhou para o papel e depois para marina. “olha, moça, eu queria entender isso aqui... parece que estão falando grego.”
marina pegou o papel e começou a ler em voz alta, com uma formalidade que parecia treinada: “o referido processo de recadastramento de titularidade bancária se faz necessário para a validação dos dados cadastrais...” antes que ela terminasse, seu joão suspirou fundo. atrás dele, dona júlia bufou baixinho e resmungou para si mesma: “parece até pegadinha, uma coisa dessas.” seu joão, já cansado, balançou a cabeça: “não sei o que isso quer dizer, moça. é pra atualizar o quê, afinal?”
marina encarou a folha e depois olhou para o rosto cansado do senhor à sua frente. pensou nas horas que ele poderia ter perdido tentando decifrar aquilo. pensou em todas as vezes que repetira aquelas palavras complicadas, sem se perguntar se alguém realmente entendia. então, respirou fundo e disse, num tom claro e direto: “é só pra confirmar se os seus dados estão certos, seu joão.” ele arregalou os olhos e deixou escapar um “ah!” de alívio. “por que já não falam assim desde o começo?” dona júlia, ouvindo aquilo, riu baixinho, “é o que eu sempre digo: eles escrevem pra não serem entendidos.”
marina sorriu, sentindo o peso daquela verdade. por que complicar o simples? por que a linguagem precisava ser um muro, quando poderia ser uma ponte? “obrigado, moça”, disse seu joão, guardando o papel no bolso com cuidado. “se todo mundo explicasse desse jeito, eu não precisava sair por aí perguntando.”
ele saiu pela porta, os passos agora mais leves. dona júlia se aproximou do balcão e tirou o papel dobrado da bolsa. “vamos lá, minha fia”, disse, ajustando os óculos. “agora que já entendi o truque, vê se consegue me explicar sem esse terequetê todo aí”. marina riu: “claro, dona júlia. pode deixar comigo.”
e explicou. falou devagar, com palavras que a senhora entendia, sem termos complicados, sem frases longas demais. dona júlia assentia, os olhos brilhando de satisfação. quando tudo ficou claro, a senhora guardou o papel e sorriu. “ah, minha fia, pra você vê, uma mulher velha como eu ainda tenho muita coisa que aprender. obrigada, viu, que deus te abençoe.”
marina sorriu, sentindo o peito leve. naquela tarde, começou a mudar a maneira de atender as pessoas. a partir dali, ela não se esconderia atrás de palavras difíceis. e assim, naquela segunda-feira, no balcão de um banco qualquer, a linguagem desceu do pedestal e caminhou descalça entre as pessoas.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
simples não é simplório ou precário. escrever simples, como fizeram drummond (que você citou) ou clarice e manoel de barros, é um passaporte quase direto ao coração. a beleza maior mora na mensagem, e não no rebuscamento da forma.
Ahhhhh, a simplicidade 🤩