o trem azul
#107: eu penso em você todos os dias, desde aquela sexta-feira da paixão. mas hoje eu quis pensar o tempo todo
olá, tudo bem?
24 de março é o dia da memória na argentina. todo ano existe esta data específica para lembrar o quão horríveis foram os sete anos de ditadura militar neste país. eu tinha até esquecido, porque você sabe, feriado no domingo é uma tristeza, um desperdício. mas as aí eu peguei a bicicleta e pedalei até a estação constitución. o trem azul que vai para la plata é algo que me contecta automaticamente a você, apesar de que a gente nunca fez essa viagem juntos.
é que sempre que eu embarco, eu sei que vou ao encontro de amigos queridos, de passear pela cidade que, apesar de ser a capital da província, tem um clima de cidade do interior goiano, ali meio rio verde, meio silvânia, sabe? o balanço do trem, a paisagem mudando de prédio, prédio, prédio para fazendinha com casinhas minúsculas, vaquinha, cavalo ovelha, rio. é como cruzar nosso goiás outra vez, só que neste caso o faríamos de carro ouvindo belchior.
eu entro no trem e sei que vou comer aquela empanada que o moço passa vendendo numa cesta, que é mais cebola que carne no recheio, mas é tão molhadinho, com a massa mais gostosa do mundo. eu nem almoço, só pensando em encontrar com ela. será se você já comeu esta empanada? eu sei que iria amar. e sei que vou ver um par de moços bonitos cantando e tocando violão. me lembro aqueles meses que a gente hiperfocou nos cantores de rock da linha d do metrô e ficava mandando vídeos pro outro sempre que via um mais interessante.
ainda na na estação, quando cheguei, havia um mar de gente desembarcando, vindos das cidades mais próximas para o ato do dia da memória. será que você iria à marcha? ou estaria no trem, indo ver a belén, o juan e as crianças? é sempre um “como seria”, como você reagiria a cada coisa que aconteceu nestes últimos anos. eu vivi buenos aires eclodindo na marcha pelo direito ao aborto, murchando nos anos da covid e voltando à vida com a seleção argentina. e sempre pensei em você.
hoje eu me lembrei de você porque vi as pessoas gritando palavras de ordem como “nunca más” e o já onipresente “milei basura, vos sos la dictadura”. você lembra quando a gente sempre via um coro de “maurício macri la puta que te parió”. bons tempos em que nossos inimigos ideológicos eram o temer e o macri. tanta coisa passou desde que você foi embora. você não passou pelos anos bolsonaro, e eu sempre penso em como você seria ativa e combatente. e como iria brigar com mileístas na internet.
e depois penso em como foi poupada da raiva que passaria nos anos da pandemia. hoje de manhã finalmente prenderam os responsáveis pela morte da marielle franco. me lembro como este crime te afetou. você até trocou sua foto no facebook por uma dela. nem deu tempo de trocar de volta e foi a tua morte o crime que partiu a muitos de nós ao meio.
há muito tempo eu não pensava tão seguido em você. quer dizer, eu penso em você todos os dias, desde aquela sexta-feira da paixão. mas hoje eu quis pensar o tempo todo, pensar como eu queria que você estivesse comigo e como você iria viver este momento. em como você ia ficar feliz em visitar a nossa amiga belém. a amiga que você deixou de presente para mim. nunca vou poder dizer o quanto eu te agradeço pelas pessoas que você conheceu antes e que ficaram na minha vida quando você foi embora.
a belu tá tão barriguda, já é o terceiro bebê dos aout, uma menina desta vez. juan está firme na campanha de colocar seu nome. brinquei que se for assim, a criança já vai nascer de franjinha. é bom estar junto das pessoas que te conheceram, lembrar de você e de como você foi importante. a gente viveu tão pouco tempo juntos nesta cidade, foi tudo tão intenso e acabou de uma forma tão injusta.
você me recebeu na sua vida de uma maneira tão espontânea e generosa e a gente se reconheceu de cara, dois bichos da mesma espécie, vindos do mesmo lugar, com as mesmas razões para não querer voltar. você salvou a minha vida e eu não pude salvar a sua. dói. falei sobre isso com a minha psicóloga (voltei para a terapia, finalmente, chora na saúde da gata, pra lá de mental).
ás vezes me dá um medo de esquecer. de que as lembranças, tão poucas, se percam e eu não tenha mais tão certinho cada fato, som, sabor, abraço, conversa. também falei disso na terapia. mas eu sei que lembrança é uma coisa, a memória é outra, maior, mais ampla, e que momentos e pessoas marcantes passam a habitar ali, amalgamado com o que veio antes e o que vai vir depois. não é uma coisa que desaparece assim. tem um pouco de você em cada um de nós que ficamos. a sté lembrou de você no discurso do meu casamento, tem um bebê chegando e vai ganhar o seu nome.
e tem muito de você nesta ciudad de la furia. nos lugares que eram seus e naqueles que com certeza você iria amar conhecer. tem você em cada garota que passa por mim de franjinha e cabelinho chanel, com uma cara de quem está disposta a conquistar o mundo como você conquistou. eu te amo muito, amiga e sei que tudo está cicatrizando quando me sento para pensar em você e sai um texto em vez de uma torrente de lágrimas. obrigado pela companhia nessa viagem. o trem azul chegou ao seu destino.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
que lindo, xu! a história dela vive em você e em todas as pessoas que a amam. parece que a conheço tanto só pelo que já li e sinto que ela era vibrante e incrível.
Homenagem linda, palavras perfeitas. Luana foi e será luz nas nossas vidas. Sempre penso que é ela quando vejo uma mulher de franjinha e corte chanel, até parece que aparece nos momentos onde tenho incertezas, dúvidas e medo para me lembrar quanto sou forte e consigo lidar com tudo.