o que sentimos tem nome
#28: não importa se você passou a vida viajando por todos os países do mundo ou ficou deitado em uma cama de hospital anos a fio. em algum momento, a morte vai chegar e c’est fini.
a última vez que a gente se falou uma coisa ficou ecoando aqui na minha cabeça. tenho a impressão que nesses dois últimos anos todos nós ficamos nos forçando de alguma maneira a marcar presença no mundo. mais ruidosos, cada qual em sua casa, mas conectados pelas redes, preocupados com o futuro e o bem-estar geral, mas ao mesmo tempo, cada um, criando inconscientemente uma narrativa de como uma pandemia poderia ser algo sobre si mesmo. e tome aprender a fazer pão, imitar uma dancinha, entrar em uma corrente, publicar um manifesto, criar um clube, compartilhar a faxina, fazer live de yoga, assistir live de música, tomar vinho, fazer bastante barulho, nas redes e nas varandas.
porque o fantasma da covid estava ali, a dois passos, à espreita. como numa praga bíblica que ensina pelo temor, a morte visitou cada família, a algumas mais de uma vez. esse trauma coletivo nos provocou uma confusão de sentimentos. sentir tristeza sentir apatia, sentir euforia, sentir revolta, sentir nostalgia, sentir esperança, mas antes de tudo, sobre tudo e através de tudo: sentir medo. o que sentimos tem nome e o covid 19 nos sopra ele o tempo todo no ouvido: sentimos medo da morte.
mas não é coisa de dois anos para cá. desde que nascemos, vivemos para nunca morrer. parece ilógico que toda nossa vida seja pautada pelo medo de uma coisa que é inevitável. tudo que começa um dia termina, é uma das poucas constantes da vida. não importa se você passou a vida viajando por todos os países do mundo ou ficou deitado em uma cama de hospital anos a fio. a morte vai chegar e c’est fini. mas é um impulso ancestral e primitivo lutar contra isso e tentar ser eterno. por isso se valoriza tanto a juventude sobre a velhice.
perseguir a juventude eterna não é somente vaidade, mais que isso, é medo da morte. encher a cara de plásticas, se comportar como um adolescente na balada quando já passou de certa idade, mentir a idade, só se relacionar com pessoas mais jovens, se preocupar excessivamente com aparência e forma física. são formas de tentar lutar contra a morte. mas não são os únicos meios.
tem o jeito bobo, que é tentar se alinhar com ela, arriscando a vida em coisas que nos fazem mal, substâncias e relações tóxicas, porque há um fascínio também aí, com toda essa gente que morreu jovem, preservando uma aura de popstar: morrison, cobain, amy, janis, james dean. querer ser cristalizado assim é um medo de seguir e envelhecer. uma maneira de tentar controlar algo que não temos controle. “se é inevitável morrer, que seja do meu jeito”. parece bravura, mas é medo.
tem o jeito feio de lutar, que é destruir. é o lado que mata. mata por prazer, por soberba, pra provar um ponto. mata pra não morrer, não por sobrevivência, mas pra se sentir vencedor. senhores da guerra, das políticas de morte, de armas, de violência. são no fundo uns cagões que morrem de medo de morrer. e, advinhem? vão.
tem o jeito divertido de lutar que é rir da cara dela. o dia de los muertos no méxico, em que as pessoas se reúnem em festas cheias de cores para celebrar a vida e relembrar aqueles que já se foram com muita festa e boa comida. a dona morte, da turma do penadinho, sempre ralando pra levar a galera pro andar de cimma. os filmes de terror, com mortes cada vez mais sangrentas, os documentários de true crime. a morte vira entretenimento, não porque (apenas) por morbidez, mas porque saber que outro morreu em outra parte nos tira da zona do perigo.
tem o jeito inútil de lutar que é procurar não falar sobre ela. enchemos nossa vida do maior número de coisas. a dancinha, as redes, as receitas, os vídeos de gatinho, as séries, as playlist de sexo, o sexo, o horóscopo, o culto, as celebridades, a propaganda, a novela, o cinema, a academia, tudo, absolutamente tudo que existe para nos distrair do que não tem jeito. viver é se distrair, como já dizia jout jout.
e tem o jeito bonito de lutar, que é construir. estabelecer pontes, tornar melhor seu entorno, cuidar dos mais vulneráveis, fortalecer velhos laços e criar novos. nada me parece mais eterno que deixar no mundo algo que vai seguir melhorando a vida das pessoas. a gente pode se fazer eterno com um jardim, um livro, uma porção de amigos, uma receita, uma fé, uma canção.
tem aquela do legião que diz que “a coragem que temos no coração parece medo da morte, mas não é em vão”. muitas das pessoas que se foram, na minha vida, não viveram em vão. eram pessoas amadas, íntegras, que viveram uma linda história e se foram quando chegou a hora. sei que não queriam, se pudesses, viveriam mais, fariam tudo de novo, melhor até. capaz o segredo é esse mesmo, aceitar a morte, mas antes disto, aceitar que estamos vivos.
GENEALOGIA
amor, filhos e igrejas
meu vô luiz veio do maranhão, encontrou a minha avó vitória em minas, se encantaram, se casaram e foram desbravar goiás, construindo igrejas. se amaram, tiveram muitos filhos e pastorearam muitas igrejas, essa era a missão deles: amor, filhos, igrejas. quando essa foto foi tirada, há mais de 50 anos, eles já tinham perdido dois filhos e criavam, com muito custo os outros cinco.
minha mãe, essa mocinha ali da esquerda era a filha rebelde do pastor. tia dina, a estudiosa. tio itamar, o mais velho, era o mais arteiro, “custoso”, como dizem em goianês. o gordinho de pé é o tio bá, o mais engraçado. tio zico ainda era bebê, não falava nada, mas depois que começou, não parou mais de tagarelar. depois deles tiveram mais dois, tio juca, o mais calado e tio neném, o mais implicante.
vô luiz teve um ataque do coração em cima do púlpito, num dia dos pais. nunca o conheci, mas amava ouvir histórias sobre esse senhor ranzinza, mas de bom coração. tio bá se foi há 15 anos. a dona vitória também mora com deus depois de uma vida de luta e de glória. se foi há nove anos. tio neném e tio juca, os caçulas ausentes na foto, se foram há bem pouco também.
perdi muitas outras gentes amadas, fiquei juntando os pedaços de memória pra fazer um bonito retrato pra mostrar pra quem veio depois. é pra isso que a gente vive, pra lembrar que somos feitos de outros que vieram antes e tiveram que deixar a festa antes do fim. e pra deixar um clima animado e bonito quando for a hora da gente sair da festa.
é bom lembrar que somos pedaços de histórias de outros, que nem sempre são bonitas e grandiosas, mas no meu caso calhou de serem retalhos amorosos, de luta, de sonho e de fé . lembrar, abraçar esse retrato e agradecer. feliz encontro, feliz partida, para um feliz reencontro.
TOP 10
os melhores avôs e avós da ficção
abuelita lydia (one day at a time)
vovó mafalda (bozo)
vó iná (a vida da gente)
vô orlando (mundo da lua)
vovó zilda (família dinossauro)
dona benta (o sítio do pica-pau amarelo)
coco (coco, a vida é uma festa)
edwin hoover (pequena miss sunshine)
lady violet (downton abbey)
dona neves (chaves)
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Na contramão das marés da juventude, tenho para mim que tempo é ingrediente, e dos bons, e o grande compromisso sempre foi envelhecer com ternura!
ps: "what is a weekend?"