o que digo, pilar?
#143: "pensemos nos restantes dos dias e deixemos o natal em paz", diz saramago. eu apoio, mas ainda quero salpicão e farofa.
olá vocês!
o escritor português josé saramago estava falando com uma tv mexicana quando lhe pediram para mandar uma mensagem de natal para os telespectadores. ateu, ele recorre à mulher, a grande pilar del río: “o que digo, pilar?” “diz que todos os dias devia ser natal”, recomenda a mulher. “mas eu odeio o natal, como é que posso dizer isso?”, responde saramago. e sem nem ao menos tomar um fôlego ele apenas jorra seus pensamentos:
“eu creio que a tradição nos impôs, ou nos levou a pensar que há dias para sermos bons. o que significaria que nos restantes dos dias poderíamos ser maus e não teríamos problemas. então pensemos nos restantes dos dias e deixemos o natal em paz”.
este trecho do ótimo documentário josé e pilar voltou a viralizar nas redes sempre acompanhada de um “uhuu, saramago arrasou!”. realmente, a imagem que a gente tem do nobel era de um velhinho zangado, cujos divertidamente não tinham muito controle do que ele falava. mas ele sabia das coisas. tenho pensado muito nesta época do ano, o que ela representa e o que deveria significar.
eu não sou religioso. não sou ateu como saramago, mas também não sou “desateu”. não me entendi ainda como um ser espiritual, mas isso é assunto para outra news. mas o nascimento de jesus é um tema que rende aqui, inclusive na terapia. minha família é enorme e maciçamente evangélica. nenhum católico, zero judeus, ninguém da macumba. ou você é crente, ou era crente e hoje não é nada. e eu sou nada. como crente, eu sabia como era o natal: não pode presépio, não pode árvore de natal, papai noel é coisa do capeta.
mas comida tá liberado, então para mim natal sempre foi sinônimo de orgia gastronômica. pernil, peru, carne assada, pelo menos meia dúzia de sobremesas incluindo o famigerado pavê, o salpicão da minha tia dina, fruta seca e uva passa. taca uva passa em tudo. e restô dontê nos dias que se seguem. claro que a parte religiosa se faz presente nas orações antes da comida (às vezes demasiado compridas, tira o pé da minha ceia, pastor). e a variação do amigo secreto que inventassem naquele ano: inimigo secreto, amigo de doce, amigo da onça, inimigo secreto.
como “nada”, o que ficou do natal para mim era as indiretas ás vezes bem diretas: “menino, você precisa voltar para a igreja, encontrar uma mulher que cuide de você, vai ficar sozinho até quando?”. quando na verdade sabiam que eu não estava sozinho há muito tempo, que sempre houve alguém ali que era bem mais que um amigo. então eu comecei a só dar uma passada, ou ir no dia seguinte. natal virou uma data triste para mim. e depois que me mudei para fora, mais triste ainda.
ano passado eu me dei conta que todo o festivo que eu sentia falta no natal, como as luzinhas, os presentes, a neve de mentira, tudo era meio uma fantasia minha de um natal que nunca houve. e eu me apegava a esses símbolos para me distrair do triste que é estar longe da minha família no natal, apesar do tenso que era passar o natal com eles. pois bem, neste ano eu decidi passar o natal a limpo. entender essa relação com a data e descobrir qual é a parte que me cabe neste latifúndio.
para começar, parei de dizer que estou longe da minha família. eu tenho o victor e ele é a minha família. então decidimos juntos criar tradições que façam sentido pra gente. sendo brasileiro, vivendo na argentina e casado com um colombiano, esse é um desafio grande. porque brasil e colômbia têm em comum um apreço muito grande pelas festas de fim de ano. na colombia a coisa começa em 7 de dezembro, com a noche de las velitas, uma vigilia da festa da imaculada conceição da virgem maria. e daí até o fim do ano é um calendário extenso de festa, amor e devoção.
e com festa eu quero dizer festa mesmo, com comida abundante, bebida e música caribenha (salsa, cúmbia, merengue) no talo. um delírio tropical, nada de bate-o-sino-pequenino. imagina se no brasil, a música típica do natal fosse calcinha preta, banda calypso e mastruz com leite. é mais ou menos assim. e a quantidade e variedade de comidas é absurda também. da colombia nós selecionamos a trilha sonora, que tocou o dia inteiro enquanto a gente cozinhava e a sobremesa, uma natilla, um tipo de flan de leite com passas e coco.
já a argentina é o país menos natalino do mundo. sério, qualquer cidade do interior do brasil tem mais luzinhas que toda buenos aires. não tem aquele ar de “estamos em festa” que começa nem bem termina outubro em quase todo mundo. e a comida aqui é diferente. já que faz muito calor, o prato principal da ceia é um tal de vitel toné, uma carne cozida inteira, recheada com fiambres e servida gelada com um molho de maionese com atum. e língua de boi com vinagrete. não querendo julgar a cultura dos outros, mas que falta faz um abraço na infância, não? daqui escolhemos o vinho (claro) e a carne recheada, só que bem assada e com uma calda de ameixas.
e do brasil teve farofa e salpicão, porque natal sem jesus a gente até aceita, mas sem farofa e salpicão, aí já é heresia. recebemos nossa amiga tati que trouxe umas coisinhas pra beliscar antes da ceia e quando vimos, era natal de novo. o natal que eu gosto e quero todo ano é esse: sem ostentação, sem gastar o que não temos, sem performar para todo mundo o que estamos fazendo, mas estando em paz de verdade.
nos próximos anos é possível que a família aumente e, com uma criança em casa, talvez o lado lúdico do natal volte a dar as caras. mas quero manter esta essência, de olhar para os lados e saber que tudo está exatamente onde deveria estar neste momento. e ser bom o ano inteiro pro natal fazer sentido como um dia de ter esperança, não de ostentar virtudes.
já é 26, acabo de comer o último pedaço de panetone com café, o buchinho cheio e o coração contente. espero que tenham tido um bom momento nestes dias. para quem ama natal, que tenha sido um momento intenso e inesquecível. para quem não gosta da data, que tenha sido leve e ligeiro. feche os olhos e pense o bem para alguém. abra os olhos e faça o bem para o mundo e para si mesmo nos próximos 365 dias.
passou voando!
como já é tradição aqui no 5 ou 6 coisinhas, todo fim de ano eu faço um pequeno balanço aqui, pro caso de aparecer a simone na minha porta perguntando “o que você fez?”. bom, foi um ano corrido, quando vi, já era. mas valeu a pena. este ano eu saí mais de casa, fiz novos amigos, renovei os antigos, trabalhei pra caramba, mas descansei o bastante, conheci e amei a colômbia e a família do meu marido, aprendi a jogar futebol, subi uma montanha, me banhei no mar do caribe, fiz mais duas tatuagens. voltei a fazer terapia. não fiz muito do que queria, mas fiz muita coisa que nem sonhava.
aqui nesta news foi um ano incrível nas coisas que importam: eu consegui manter a constância e frequência de publicações. é um feito e tanto pra mim. e a cada texto postado, uma quantidade boa de leitores comentando e acrescentando ponto de vista, uma comunidade aqui no meu quintal. vocês são o sonho de todo escritor.
e nas coisas que não importam tanto, mas importam sim, eu comecei o ano com 739 inscritos e termino com quase 1300 (faltam 2). para mim é um número enorme de pesoas que se interessam pelo que escrevo, mais do que pensei quando comecei a escrever aqui. fora os queridões e queridonas que seguem o perfil no app. pessoas de verdade, que tiram um tempo para abrir o e-mail (ou o app do substack) para ler as cinco ou seis bobagens que passam pela minha cabeça a cada semana. a vocês, queridos leitores, e a cada um em particular, meu agradecimento pela leitura, o like, a recomendação, o comentário, a lembrança e a presença. muito obrigado por tudo.
(como é tradição aqui também, nas próximas semanas eu vou tirar um tempo de descanso e voltamos por aqui na terça-feira, dia 14 de janeiro. até lá, se quiser, você pode ler o arquivo da newsletter, com quase 150 textos fresquinhos e cheios de afeto aqui, no arquivo. e se tiver a fim de mandar algum recado ou sugestão, pode responder este form aqui. desde já agradeço.)
feliz ano novo e um grande abraço.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Eu sou zero religioso, pra mim Natal é sinonimo de decoracao e, como voce disse, aqui nao tem NADA. Só uma árvore nas Galerias Pacífico, que deve ser pra turista brasileiro ver. Eu lembro que no Brasila decoracao comecava a aparecer ali por meados de outubro, depois do dia das criancas, acompanhada das primeiras chuvas de verao e do comeco do horário de verao. Era uma mudanca de chavinha na cabeca: comecou o fim de ano, hora de ser mais feliz, relaxar e empurrar as responsabilidades pra marco.
Bom final de ano, obrigado pelos textos inspirados! Abraço.