o que a gente perde ao tentar se salvar?
#159 - duas leituras sobre pais, identidade e sobrevivência: o soco de édouard louis e o silêncio de alison bechdel atravessando minhas próprias mudanças
olá vocês!
no mês passado, no meio da correria da mudança de país e todas as emoções que algo dessa grandeza carrega, acabei passando a minha vida a limpo. visitei memórias, reencontrei fotos antigas, reli cartas, me despedi de lugares e pessoas. deixar algo para trás exige coragem e um emocional de titânio. até mesmo as leituras que fiz me deixaram mexido. uma grande amiga, a tati, me recomendou mudar: método, do édouard louis. ela disse que eu ia amar e não errou. dias depois, outra amiga, a tata, nos convidou pra ver um musical chamado fun home, que eu não conhecia. só depois descobri que era baseado numa hq da alison bechdel. corri pra ler o livro e chorei um rio.
os dois chegaram no meio das caixas e lembranças, e foi impossível não colocá-los lado a lado. um tem cheiro de biblioteca antiga, o outro de corredor de hospital. um desenha os silêncios da infância com tinta sépia. o outro descreve a vergonha com martelo e cinzel. e mesmo sendo tão diferentes, compartilham um eixo: são histórias de filhos tentando entender os pais, enquanto tentam se salvar deles. hoje eu resolvi desenhar um paralelo entre os dois livros e como cada um bateu aqui.
mudar para não morrer
há dois dias, jantei com meus tios. no meio das risadas, meu tio lembrou de como me dava vergonha contar aos amigos que eu morava em senador canedo, cidade da periferia de goiânia. é verdade, eu tinha esquecido. dizia que morava no bairro da vila nova, com minha avó. meu primo riu, achando graça, já que vila nova nem era um bairro de bacana. eu expliquei: “eles zoavam meu nome, minha cor, meu jeito de bicha. em algo eu tinha que me proteger. se eu dizia que era da vila nova, eles tinham um pouco de pena, mas se eu dissesse que era de senador canedo, eles não iam nem querer andar comigo”.
acho que ter sido pobre na infância marca para sempre a forma como a gente habita o mundo. você até pode frequentar lugares mais sofisticados, aprender os códigos, saber como se portar. mas por dentro, a sensação de "caramba, olha onde eu tô" nunca vai embora. e lendo édouard louis, percebi que esse sentimento não é só meu. ele nasceu no norte da frança, numa família operária, num ambiente atravessado por violência, machismo e homofobia.
nos seus livros anteriores (para acabar com eddy bellegueule, história da violência, quem matou meu pai), o autor visita o passado, mas aqui ele ele se concentra em contar como conseguiu escapar dele. e, mais do que isso, como aprendeu a performar um outro eu para ser aceito em círculos sociais, acadêmicos e culturais de prestígio. edouard escreve com a convicção de que o corpo e a vida são moldados pelas condições sociais, e que mudar não é apenas uma escolha individual, mas uma resposta a estruturas de opressão.
a força do livro está em expor esse processo sem romantismo. mudar, para édouard, não foi florescer, foi resistir. ele muda a voz, o corpo, a mente. troca de roupas, de cidade, de vocabulário. tudo para se afastar do menino pobre e afeminado que ele era. mas isso tem um custo: a culpa por deixar a família, a raiva do que viveu, a ambivalência de quem já não pertence a lugar nenhum. sua escrita é fragmentada e intensa, quase um grito contido. mudar: método não é uma história de superação. é um relato honesto sobre o que custa sobreviver.
era uma casa muito engraçada
quando ouvi o nome alison bechdel, me veio um déjà-vu. só depois liguei o nome à pessoa: ela é uma das criadoras do teste de bechdel, aquele critério que verifica se uma obra tem duas personagens femininas que conversam entre si sobre algo que não seja um homem. um simples teste ao qual milhares de filmes não são aprovados. o objetivo é chamar a atenção para a desigualdade de gênero na ficção e sensibilizar o público sobre como as mulheres são (ou não são) representadas.
é curioso perceber que mesmo um quadrinho sobre um pai e sua filha lésbica, mergulhado em referências masculinas e silenciosamente trágico, carrega em seu dna a consciência crítica de quem sempre soube o que é ser minoria numa narrativa que não foi feita pra você. em fun home - uma tragicomédia em família, a autora volta à sua infância com o rigor de uma cartógrafa. ela desenha, escreve, pesquisa. e revisita os anos em que viveu com os pais e os irmãos menores em uma casa que também funcionava como uma funerária (o “fun” do título pode ser interpretado tanto como divertido quanto a abreviatura de fúnerária).
e neste baú de memórias, ela reserva o lugar central para o pai, um homem culto, apaixonado por literatura e decoração, mas fechado, tenso, ambíguo. aos poucos, a filha descobre que o pai é gay, e que viveu essa verdade de forma clandestina, disfarçada, sufocada. a ironia é cruel: quando ela finalmente consegue se assumir, ele morre, em circunstâncias misteriosas. e o livro todo é esse luto: pela infância, pelo pai, por tudo o que poderia ter sido dito e não foi.
o que torna fun home tão singular é a sua honestidade: bechdel não suaviza as contradições nem as violências afetivas. ela escreve com precisão cirúrgica, mas também com uma vulnerabilidade que atravessa a intelectualização. trata-se, afinal, de um livro sobre o poder e a insuficiência das palavras - e do desenho - para nomear o que dói. é uma elegia para um pai difícil (como o meu e, seguramente, o de muitos de vocês) e também uma autoanálise gráfica e um ensaio sobre identidade, crescimento e coragem.
em ambos os livros, há uma questão de classe. édouard escreve a partir da escassez explícita: a gordura na panela, o cheiro da roupa que não seca, o corpo que precisa ser moldado para ser aceito. alison fala de uma classe média intelectualizada, onde a opressão se esconde em citações literárias e móveis vitorianos. o sofrimento muda de roupa, mas é o mesmo: o de não caber, o de ter que se transformar para não desaparecer.
ler os dois foi como ver duas versões de uma mesma dor. de um lado, a infância olhada com lupa. do outro, a infância quase apagada, enterrada sob camadas de resistência. e no centro, essa pergunta que nunca some: o que a gente perde ao tentar se salvar?talvez por isso essas leituras tenham me atravessado tanto. talvez porque eu também tenha aprendido a modular a voz, a esconder gestos, a evitar palavras. talvez porque mudar, para mim, também tenha sido um tipo de luto. e talvez porque, como eles, eu também carregue a dor de amar quem não pôde me amar como eu precisava.
escrever, nesses livros, é uma forma de escavar. de reconstruir. de entender. e, no fundo, de se reconciliar. não com os pais, mas com a criança que sobreviveu. talvez mudar de país não seja tão diferente assim de mudar de nome. ou de corpo. ou de história. às vezes, é só uma forma de dizer: eu tô aqui. eu existo. eu me recuso a desaparecer.
júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
E não é que a carapuça serviu aqui também?! Obrigada pelo texto, veio na hora exata 🫀
resistir. taí um dos verbos mais difíceis de conjugar, porque implica uma força que nem sempre a gente tem (ou acha que não tem). é doído, exige esforço, resiliência, paciência. ser minoria - quando não uma soma delas - é, intrinsecamente e sobretudo, resistir. sigamos, amigo! que bons ventos soprem a sua mudança! =)