o mundo é um moinho
#64: não há antídoto melhor para a tristeza que a voz de cartola cantando os versos mais bonitos já escritos em português
olá, tudo bem?
março de 2023, eu sobrevivi. eu tenho uma questã com o terceiro mês do ano. não é implicância, eu até gosto do clima cálido de outono começando; de ainda não ser tão avançado no ano, de modo que não há a pressão de “nossa, já estamos aqui”; da euforia trôpega de pós carnaval. não é o mês em si, mas fato é que há um par de anos eu percebo que é sempre em março que eu tenho um breakdown, março é o 2007 da minha britney.
nunca dá pra prever de onde vem. é sempre uma melancolia sem razão específica, minha amiga depressão que vai se assomando meticulosa e devagar até ocupar o centro do meu foco. uma tristeza que chega sem dizer a que veio. como diria renato russo, vem de repente um anjo triste perto de mim. alguns anos vêm com bonus: a separação dos meus pais há 30 anos, a morte da minha avó há 10 anos e da minha amiga luana há 5, todos em março, são alguns marcos temporais. em março de 2017 eu me quebrei ao meio, numa separação difícil. enfim, março é o mês em que eu me esforço o dobro para existir a metade. mas eu venci.
neste ano eu enfrentei demonios internos. até fazer a coisa mais tranquila do mundo, trabalhar em home office foi puxado. era tempo demais procrastinando e mais tempo ainda me sentindo culpado por não conseguir cumprir prazos. e a culpa me gerava angústia que não me deixava trabalhar. comecei a me achar uma fraude, um engodo, alguém em quem ninguém devia depositar nenhuma confiança.
claro que eu reconheço as coisas incríveis ao meu redor: meu amor, meu lar, minha família, minha independência. mas sabe como é (ou talvez você não saiba como é, espero que não. não é um bom lugar para estar). me sentir assim é cansativo. se eu puder descrever a sensação, é esta: cansaço físico, mental e emocional. eu me sentia tão cansado que não me sobrava tempo nem pra fazer o que qualquer um faria nessa situação: chorar.
de alguém que chora por nada, eu passei a ser quem não chora de jeito nenhum. travei, sequei, desaguei. são as mágoas de março fechando a torneira. eu juro, vi filme triste, escutei as músicas mais tristes do mundo, qualquer coisa que simplesmente implodisse a barragem que não deixava minha emoção fluir e encontrar seu curso. a pior sensação é sentir demais e não conseguir botar pra fora. eu tinha um mundo pra chorar, só precisava um motivo. e nenhum parecia cortante o suficiente.
mas havia algo que nem eu, nem minha tristeza estávamos contando: cartola cantando o mundo é um moinho.
veio assim, com um corte de vídeo na minha timeline do twitter:
o brilho no olho do moço (@goonygoogles nas redes) ouvindo alguns dos versos mais lindos já escritos em português e se dando conta da beleza e da tristeza da canção me comoveram. fui atrás do vídeo e fiquei realmente encantado com tudo. pra quem não conhece, é um canal de react em que basicamente ele ouve uma música ou vê um filme brasileiro pela primeira vez e vai reagindo, interpretando o que ele entende da letra (os vídeos vão para ele com tradução). o host do canal é um homem negro e, pelo que pude entender, prioriza a música negra feita no brasil. os vídeos de reação ás músicas de alcione, racionais e zeca pagodinho são muito bons, mas o ouro de mina aqui é o vídeo de cartola. porque foi a emoção dele que me emocionou.
e foi com este vídeo do cartola que eu cheguei lá no fundo das minhas emoções.
porque é uma música que diz muito sobre o brasil, sobre a melhor música do mundo, sobre família, sobre tristeza e separação, sobre sentimentos que não conseguimos expressar. foi com o mundo é o moinho que meu barraco desabou e meu barco se perdeu. tranquei a porta e chorei até não poder mais, até doer a cabeça. respirei fundo, me recompus. e saí pra dar uma volta no quarteirão pra chorar mais. chorei coisa acumulada desde, sei lá, 1993. depois começou a passar.
o clássico de cartola foi composto nos anos 1940 e só gravado em 1976. o violão de guinga e a flauta de altamiro carrilho na introdução são emocionantes demais, já prevendo o poder dos versos. e cartola entra cantando em um tom de quem tem uma vida inteira de lições para ensinar, só falta achar uma cabeça aberta, um solo fértil, dois ouvidos atentos.
a canção foi composta para creuza, filha adotiva de cartola. a letra é uma reflexão sobre a vida e as preocupações do mestre com as paixões e escolhas da menina. é uma forma linda de aconselhar alguém que está dando seus primeiros passos fora do ninho. não é exatamente uma letra com a qual eu pudesse me relacionar diretamente (talvez meu pai não esteja muito preocupado se o mundo triturar meus sonhos). mas me pegou de jeito e aproveitei o ensejo para chorar por um monte de outras coisas.
música brasileira não é terapia, eu sei. mas o fato é que mais uma vez minha vida foi salva por uma canção. há muito que fazer pra manter a cabeça boa e o espírito mais tranquilo, mas é bom saber que de alguma forma a beleza do mundo está aí, pronta pra ser descoberta ou redescoberta.
TOP 10
10 versos lindos da música brasileira
“preste atenção, o mundo é um moinho, vai triturar teus sonhos, tão mesquinho” - cartola em o mundo é um moinho
“amar e mudar as coisas me interessa mais” - belchior em alucinação
“porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos e sonhos não envelhecem” - milton nascimento, lô borges e márcio borges em clube da esquina nº 2
“se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu” - chico buarque em te amo
“o nosso amor é tão bonito e tão sincero, feito festa de são joão” - roque ferreira e jota veloso em foguete
“se eu sou algo incompreensível, meu deus é mais” - gilberto gil em esotérico
“onde queres mistério, eu sou a luz” - caetano veloso em o quereres
“você me abre seus braços e a gente faz um país” - marina lima e antônio cícero em fullgás
“que coincidência é o amor: a nossa música nunca mais tocou” - cazuza e roberto frejat em codinome beija-flor
“amores vêm e vão, são aves de verão” - joel marques em não aprendi dizer adeus
e você, qual seu verso preferido da música brasileira? aquele que faz sua alma sair do corpo no momento em que escuta? conta aí pra gente.
links, links, links!
para procrastinar, o site neal.fun tem as coisas mais louconas do google street view. só entra e vai clicando no botão random, no canto da tela. mas aviso: você vai passar muito tempo neste site porque é irresistível.
para rir, este tweet é uma síntese deliciosa de brasil.
para ouvir, duas coisas maravilhosas num só link — sambas clássicos e playlist com nome hilário: vezes em que sambistas colocaram hannah arendt para mamar, só com sambão cheio de consciência de classe.
e para limpar a vista, o instagram lindão da artista anna cunha.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
o mundo é um moinho
Conheci o canal desse cara faz um tempo, quando eu entrei numa pilha de ver um react de gringos atrás do outro pra "Negro Drama", dos Racionais. Depois vi alguns outros do Goony (aliás, gosto muito de canais de react assim), mas só essa semana é que assisti a esse de "O Mundo é um Moinho". E foi muito surpreendente e bonito vê-lo se debulhando daquele jeito. Parece que depois de um tempo a gente se esquece de chorar, de como é, do que precisa fazer pra precipitar a lágrima: quando você diz que "de alguém que chora por nada", passou a ser "quem não chora de jeito nenhum", eu me identifiquei muito.
Não vou me lembrar agora de algum verso da música brasileira que me passa exatamente essa sensação descrita. Mas um daqueles que me fizeram e fazem parar pra refletir sempre que escuto vem da música "Meus Irmãos", de Marina Lima e Antônio Cícero - lançada, veja só, em 1993:
"Os homens podem muito pouco. O tempo sempre sabe mais como agir".
Melhoras, querido!
oi Junior! esse post foi um carinho hoje. eu já tinha visto o vídeo e foi bom revisitar o assunto; nessa vida de conexão 24h parece que a gente vê tudo tão rápido, tão no susto, raramente alguma coisa volta para nos deixar pensativos uma segunda vez.
bem, minha música oficial de chorar real oficial é Soluços, do Jards Macalé. a letra não diz nada se lida sozinha, mas a interpretação dele é que dá o tom para minha tristeza. recomendo para quando estiver travado de novo rs