o meu defeito é não saber parar
#1: mulher-robô, óleo de argan, ódio ao sambô e a atriz mais chique do brasil
quem passou boa parte da vida na frente da tv sabe que o sonho de toda uma geração era ser famoso. não subcelebridade, mas famoso o suficiente para sentar no sofá do jô. ou dar um selinho na hebe. ou a glória das glórias: estar no arquivo confidencial do domingão do faustão (rip). não sei qual seria o correspondente a isso nos dias de hoje, mas se eu fosse famoso mesmo, o que eu iria querer é ir contar uma história no porchat.
que históra é essa, porchat? é meu programa de tv preferido (embora eu o escute mais como podcast, enfim, a hipocrisia) e a parte que eu mais gosto é quando ele faz aquelas mesmas perguntas para todos os convidados. em especial “qual é a primeira lembrança que você tem da vida?”. eu sei exatamente o que eu responderia e é essa história que você vai ler aqui hoje.
esta é a primeira edição da newsletter cinco ou seis coisinhas, uma forma que eu achei de compartilhar algumas coisas que passam pela minha cabeça, mas sem ter um tema específico. eu queria voltar a escrever, não sabia exatamente o quê e nem onde. o onde eu já decidi, aqui. o “que” a gente pode decidir no caminho. eu de cá escrevendo e você aí assinando. aproveite porque o sonho é grátis.
hoje: eu destravo uma memória antiga de infância, defendo a instituição “pequenos ódios” e exalto uma figura muito importante para a cultura nacional. vem comigo!
UMA MÚSICA
teleguiado pela paixonite
meu cérebro opera de uma maneira que mistura o aleatório e o sistemático. ou seja, algumas lembranças surgem do mais absoluto nada, mas com uma frequência e periodicidade consistente.
uma vez por ano, ali por meados de dezembro, minha memória volta ao dia 0. não o dia em que eu nasci, claro, mas à minha primeira lembrança da vida: o dia em que, aos quatro anos me operaram de adenoide e eu ouvi bwana da rita lee com meu pai, no toca-fitas do carro. acho incrível que o evento inaugural da minha vida como eu a conheço tenha trilha sonora.
me lembro de ir muito cedo com meus pais de carro até o hospital, da minha mãe ficar resolvendo a papelada de internação, convênio, essas coisas e eu ficar no carro com meu pai. como eu estava com muito medo, ele me passou para o banco da frente, e eu me lembro de ter achado isso o máximo. eu estava em jejum e pra me distrair ele ligou o rádio. em seguida começou a tocar uma música muito animada com uma letra que de saída já dava seu recado: a moça era apaixonada por um tal de bwana e faria tudo por ele.
mas o resto da letra, eu não entendi muita coisa. o que queria dizer “teleguiada pela paixonite”? ela era uma mulher-robô de verdade ? que raios de nome é bwana? fora as palavras que eu pedia pro meu pai me explicar: sarjeta, gorjeta, volúpia. só sei que eu adorei demais.
foi por muito tempo minha música preferida, apesar de que não era exatamente uma música pra pirralho. (até aí beleza, né, afinal a xuxa cantava coisas como “o betão apaixonado foi beijar a marieta, errou a boca e beijou sua… bochecha” pro público infantil). ah, os anos 80.
só depois, muito depois, eu descobri, lendo a autobiografia da rita, que bwana foi feita como uma declaração de amor a roberto de carvalho, seu marido, com quem forma até hoje o melhor casal da música brasileira. segundo ela conta, ela não lembra de muita coisa dessa época, pois andava entornando demais. mas que o marido estava “representando o personagem de gibi fantasma, e eu no papel de narda, sua namorada submissa”. não entendi, mas já é algo.
daquele dia, a lembrança vívida do cheiro da anestesia que eu inalei na cirurgia e a presença de rita lee cantando sobre ser intensa no amor marcaram a minha vida pra sempre. ao contrário da moça da canção, eu sou carinhoso, sei cozinhar e não tenho talento para a boemia. mas tal qual rita, eu sou muito intenso e, não tem jeito, o meu defeito é não saber parar.
bwana é a terceira música do lado a do discaço flerte fatal de rita lee e roberto de carvalho, lançado em 1987, que você pode ouvir aqui.
UM APELO
vamos voltar a odiar pequeno
dia desses estourou no twitter uma corrente que era “10 coisas aleatórias que sou contra”. eu aderi por motivos de que sou totalmente a favor de qualquer iniciativa que faça a internet voltar aos tempos do finado orkut, porque amo fazer listas de coisas e porque sou a favor de cultivar pequenos ódios.
“sério, júnior, no meio de ~tudo que estamos vivendo~ você acha que cabe falar de mais ódio no mundo?” calma lá, deixe-me explicar. havia um tempo ali meados dos 2000 até um pouco antes de 2016 em que quase não se falava em discurso de ódio. a gente odiava coisas normais como a segunda feira, a uva passa no arroz ou o sambô.
claro que havia uma gente completamente alterada espumando contra negros, lgbts, mulheres, pobres, minorias em geral. mas dentro de seus cercadinhos. com o avanço dessa turba na mídia, política e redes sociais, todo mundo foi meio contaminado pelo ódio. perdemos a capacidade de odiar pequeno. os ódios agora são maiores e mais óbvios.
a gente nem devia falar que odeia o fascismo (e racismo, misoginia, homofobia, etc), porque é consenso geral, todo mundo odeia, ou deve odiar, olho com quem é indiferente. é tipo quem respondia “falsidade” na parte de “o que você mais odeia” do caderno de perguntas. e tem alguém que goste?
o maior estrago do bolsonarismo na minha vida é que ele nivelou tão por baixo minha capacidade de sentir ódio, que qualquer coisa que me irrite parece irrelevante perto do toda a revolta e raiva acumulada dentro de mim diante de tanta coisa ruim que esse ser faz ou fala. o que é uma comida molhada no ralo da pia se a gente tem um governo com potencial genocida no meio de uma pandemia?
dia desses me peguei sentindo saudade do governo temer, se isso não é ter chegado ao fundo do poço, não sei o que é. sinto que estamos meio anestesiados, dessensibilizados, e que por fim, vamos chegar ao ponto de que toda maldade é banal e corriqueira (o que não é verdade). a solução não é deixar de se importar, é voltar também ao nossos pequenos ódios particulares. aqueles inofensivos, divertidos, bobos.
minha teoria é que com os pequenos ódios, deixamos nossos corações mais livres para mais experiências de afeto. por isso eu faço um apelo: vamos voltar a odiar pequeno. se reunir pra falar mal do bombom opereta, ou da calça de cintura baixa, ou do sambô. que saudade de odiar o sambô, gente, por onde anda o sambô?
a saber, minha lista de pequenos ódios aleatórios:
banco alto sem encosto
pombas
cardápio em qr code
print de twitter no feed do instagram
calça de cintura baixa
resto de comida na pia
a música taj mahal do jorge ben jor
frio
a novela por amor
a expressão digital influencer
e vc, conta pra mim qual seu pequeno ódio particular? não vale “falsidade”
UM DATE
segue o seco
quando eu for muito famoso e for contar uma história no programa do fábio porchat, com certeza, vai ser algo sobre encontros. porque é um assunto em que eu tenho local de falha. e aqui nesse espaço eu vou dividir alguns com vocês nesta e em futuras newsletters. pra começar, a história do boy “segue o seco”.
há uns três anos eu estava no tinder, brincando de candy crush de macho, quando dei um match com um moço bem, mas bem bonito. moreno, cabeludo, sorriso lindo, camisas floridas, colombiano (meu sotaque preferido na hora do vamuvê). e o papo rendeu bom, “vou pegar”, pensei.
chamei o moço pra tomar um vinho no meu terraço, se é que vocês me entendem, e ele foi. chegou, muito simpático, baixinho, cheiroso, mas tinha algo me incomodando. fomos conversando, bebendo, rindo, esbarrando um no outro, se é que vocês me entendem. mas eu tava meio sem jeito, porque o cabelo dele tava muito seco.
é sério: muito, muito, muito desidratado. já vi sanduíche de avião mais úmido que aquele cabelo. tão seco que devia ser de capricórnio. tão seco que a rachel de queiroz morou naquele cabelo durante o tempo pra escrever o quinze. mais seco que o vinho que a gente tomava. “segue o seco sem sacar que o caminho é, seco sem sacar que seco é o ser só” era o que eu cantarolava mentalmente falando com ele.
então, papo vai e papo vem e aquele cabelo no meio dos meus planos de hacer el delicioso. até que, dado o calor do verão argentino, eu propus ao boy tomar um banho gelado. fomos e entre aquilo no sabão e sabão naquilo eu olhei no fundo dos olhos negros do meu latín lover e pedi: “posso hidratar seu cabelo?”.
não sei se ele levou aquilo como um joguinho sexual, mas eu encarei como uma missão a ser cumprida: lavei, passei creme, deixei meia hora na touca e finalizei com óleo de argan. enquanto isso rimos e nos pegamos e etc. nunca mais nos falamos? nunca mais nos falamos. mas, o boy foi pra casa com o cabelo mais hidratado de buenos aires.
UMA HOMENAGEM
a instituição mila moreira
mês passado morreu mila moreira, uma das atrizes mais prolíficas em produções da globo. mais que uma atriz, era uma instituição. quase sempre fazia uma personagem arquetípica no imaginário noveleiro: a ricaça despreocupada das novelas do cassiano.
uma das mulheres mais elegantes do país. pudera, foi uma das primeiras supermodelos brasileiras, no tempo em que modelo era chamada de manequim, ou maneca. era chiquérrima e quando migrou pra tv, virou a epítome de chiqueza do plim-plim.
era batata: se o enredo era sobre moda ou alta sociedade, tava lá a mila moreira chiquérrima, sentada num sofá enorme, em um ângulo que valorizava seu colo. ou desfilando numa vernissage com uma taça de champagne na mão. ou de chapelão numa cadeira à beira da piscina. quem não queria ser mila moreira quando crescesse?
quase sempre era a confidente da vilã, ou melhor amiga da protagonista. das que não tinham cenário próprio e era a orelha das outras personagens. faltou que lhe dessem papéis mais ousados e desafiadores, mas nenhuma atriz fazia tão bem o papel de mila moreira como mila moreira. vai fazer falta.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book pela amazon: https://www.amazon.com.br/dp/B07W5K15LP
Adoro essas lembranças remotas e aleatórias que escapam pelo subconsciente, um lance meio Proustiano. Envolvendo música então... A primeira que me lembro de ter ouvido é difícil de afirmar com certeza, mas há muitas que me remetem a uma época - e é por volta dessa mesma que você citou, 1986/87/88. Uma delícia essa cartinha!
Obrigada por trazer leveza a minha segunda-feira <3 Estou aqui ouvindo a playlist já e tentando pensar qual é a minha primeira lembrança que tenho na vida.