o cérebro eletrônico faz tudo?
#77: não achei a magalu da elis regina grande coisa. uma inteligência artificial pode fazer de tudo, mas emoção é um negócio humano.
olá , tudo bem?
eu juro que não queria que você tivesse que ler mais um texto sobre o famigerado comercial da volkswagen com a elis regina. mas sim, eu queria aproveitar o burburinho gerado pra falar sobre um par de temas que ele suscita. (só nesta frase eu gastei minha cota de palavras bonitas. daqui pra frente o texto vai ser uma pobreza só, vai vendo.)
eu confesso que não tenho uma opinião totalmente formada sobre o comercial em si. é ético ou não usar a imagem de uma artista falecida para que nossas emoções nos convençam a comprar carros? é legal usar uma música já esvaziada de sentido para comunicar com imagens o contrário do que diz a letra? é justo condenar maria rita e os fãs de elis regina por se embalarem numa corrente de saudade e imaginarem um presente alternativo onde mãe e filha pudessem cantar juntas? e é razoável acusar quem não se emocionou de não ter coração?
minha resposta é: sei lá, bicho! o que eu sei é que elis regina me emociona muito. ler sobre ela, ver suas entrevistas, e sobretudo escutar suas músicas não me levam para um passado idealizado, mas me plantam no presente e me inspiram a viver, buscar, lutar por um mundo melhor. elis segue atual, mais viva que nunca, em outro nível de vínculo. neste ponto, acho triste reduzir alguém tão grande a dois minutos de holograma cantando trechos devidamente recortados de uma canção. mas achei bonito e válido que maria rita pudesse estar ali, presente, de verdade.
quanto á outra questão, de que a volkswagen teria apoiado de maneira até entusiasmada a ditadura militar, período que perseguiu e oprimiu artistas como a própria elis, realmente é foda. muito foda pensar nisso. parafraseando uma canção de elis, a emoção e a revolta se igualam na fogueira das paixões. o capitalismo é isso, eles lucram com sua emoção e com sua revolta. eu particularmente não acho que isso vá manchar o legado de elis regina, ela é maior que tudo isso.
dito isso, acho que esse é um terreno em que todos os lados tem razão porque tem toda uma gama de nuances no meio. dá pra se emocionar com a emoção da maria rita e querer que os donos da vw se fodam. eu particularmente não achei a magalu da elis regina grande coisa. faltou um brilho no olhar que só tem quem sente. se colocassem a andréia horta dublando a elis, eu acho que me emocionaria mais.
mas aí não seria a novidade que tanto o marketing da empresa queria imprimir. a coisa que publicitário mais ama é ser reconhecido por outros publicitários, e esse filme com certeza vai percorrer todos os festivais do mundo e ganhar uma caralhada de prêmios, como exemplo de inovação. e a gente sabe que falhou como sociedade quando publicitário fica muito feliz.
abre parêntesis: inovação, inovação meeesmo foi há quase 10 anos quando recriaram audrey hepburn digitalmente para um comercial de chocolates. desde então, volta e meia tem alguma celebridade que já virou charge com asinha sendo ressuscitada para dar veracidade a algum reclame. em inglês já tem até nome pra isso: delebrity, uma corruptela de dead celebritry. o conceito em si, é um apelo ao saudosismo, mas se você reparar bem mesmo, é meio móbido. não à toa já tem famoso deixando em testamento o que pode ou não ser feito com sua obra, imagem e legado.
no ano passado, a família de roberto gomes bolaños, o gênio por trás de chaves e chapolim autorizou que se fizesse uma versão digital do ator para um comercial de streaming. os fãs não gostaram nem um pouco, porque a mesma família retirou de todas as plataformas e redes de televisão os direitos de transmissão das séries. imagino o que a família de renato russo não fará por uns trocados, já que desde a morte dele já saíram mais de oito mil coletâneas de rapas de estúdio e duetos póstumos, alguns com péssima qualidade de som.
eu penso também no belchior, que (ainda) não apareceu em nenhum comercial em versão toy story, mas é dele a música que embala o comercial da vw. sinceramente eu teria pensado em outra música. não somente porque a composição seja um hino pessimista escrito sob o terror da ditadura militar nos anos 70. mas porque eu imagino que kombis tenham uma alma meio hippie, sabe? casa no campo combinaria melhor. ou velha roupa colorida, se queriam tanto uma do belchior.
como disse, elis me emociona muito. e uma inteligência artificial pode ter tudo, mas emoção é um negócio humano. eu acho que ainda estamos engatinhando no terreno das possibilidades da inteligência artificial. claro, nas mãos de quem tem o controle sobre tudo, o perigo é mesmo que muita gente possa perder o emprego. todos os dias somos bombardeados com tutoriais ensinando como tirar proveito das novas tecnologias para produzir conteúdo, escrever, se comunicar, entre tantas outras coisas.
é uma discussão válida, mas para mim, as máquinas ainda não chegaram perto da complexidade humana. um ia não poderia escrever a rayuela, de cortázar. não poderia criar um álbum branco dos beatles, não poderia imaginar um filme tão emocionante como central do brasil ou escrever um quarto de despejo. junta todos os robôs do mundo, não dão um joão gilberto, uma fernanda montenegro, um cartola, um garrincha. o cérebro eletrônico faz tudo, faz quase tudo, mas cantar atrás da porta, com extraordinária emoção, com a voz tremendo, saindo lágrima do olho e ainda assim com perfeito domínio da voz, aí não faz não.
TOP 10
minhas músicas preferidas de elis regina
por toda minha vida
tiro ao álvaro
águas de março
20 anos blue
as aparências enganam
atrás da porta
se eu quiser falar com deus
romaria
essa mulher
gracias a la vida
UMA CITAÇÃO
“penso, logo existo é uma afirmação de um intelectual que subestima as dores de dente. sinto, logo existo é uma verdade de alcance muito mais amplo e que concerne a todo ser vivo. meu eu não se distingue essencialmente do seu eu pelo pensamento. muitas pessoas, poucas ideias: pensamos todos mais ou menos a mesma coisa, transmitindo, pedindo emprestado, roubando nossas ideias um do outro. mas se alguém pisa meu pé, só eu sinto a dor. o fundamento do eu não é o pensamento mas o sofrimento, sentimento mais elementar de todos. no sofrimento, nem um gato pode duvidar de seu eu único e não intercambiável. quando o sofrimento é muito agudo, o mundo desaparece e cada um de nós fica só consigo mesmo. o sofrimento é a grande escola do egocentrismo.” milan kundera, em a imortalidade
links, links, links!
já que estamos falando de emoção, duvido esses chat de ia escreverem algo tão bonito quanto este texto do
na newsletter prato feito. ele conta a relação com suas vizinhas de prédio, que como ele, são imigrantes. elas vêm de gana, ele do brasil e a vida os juntou em portugal. através de diferenças e coisas em comum nas culinárias dos dois países ele entrega um texto cheio de afeto, sabores e aromas.o episódio “missão impossível” do podcast radio novelo apresenta, semana passada estava emocionante. na primeira parte, uma neta que mobiliza meio mundo para conseguir uma mensagem do papa francisco de presente de aniversário de 100 anos de sua avó. no outro, a saga de um engenheiro de som para recuperar um tesouro perdido: as gravações originais de um álbum de joão gilberto.
ao que parece, as comédias têm um caso de amor com carros amarelos. pelo menos é o que alguém reparou e criou uma thread no twitter.
e o threads, hein? vocês acham que vai virar ou vai morrer logo logo igual o be real? pelo sim, pelo não, me segue lá, que eu sigo de volta.
hey, chegou até aqui? pois se gostou ao ponto de ler até o fim, que tal apoiar essa publicação autoral, independente, sem recurso e sem assinaturas? é só chamar na dm . qualquer quantia é bem-vinda, é só pensar quanto você investiria numa assinatura de um conteúdo que você curte. outra forma bacana de ajudar é compartilhar com quem você acha que gostaria de ler meu conteúdo. desde já muito obrigado!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Texto maravilhoso, Xu. Mais uma vez :)