o amor na cidade da fúria
#153 - medianeras é um filme sobre solidão e a procura do amor na buenos aires do século 21, onde estamos cada vez mais e cada vez menos conectados.
si preferís leer este texto en español, te dejo la traducción aquí.
olá, vocês!
quem visita buenos aires como turista pode pensar que a cidade obedece a um ritmo harmônico, como os movimentos semicirculares do tango, as formas curvas de uma medialuna, ou a arquitetura, inspirada na europa e cheia de arabescos. mas para quem vive aqui, a cidade também mostra um lado duro, anguloso, com corte ríspido e pontas afiadas.
há uma tensão constante entre a beleza e a aspereza, entre a delicadeza da nostalgia e a dureza do concreto. é a buenos aires de que ressoa na canção en la ciudad de la furia, imortalizada na voz de gustavo cerati: um lugar onde as sombras cobrem os rostos, onde a cidade se revela intensa e implacável, mas também viva e pulsante. essa também é a buenos aires de medianeras.
em espanhol, a palavra medianera refere-se àquelas paredes cegas que dividem edifícios, separando um apartamento do outro, delimitando espaços e, muitas vezes, impedindo que a luz e o olhar alcancem o outro lado. sabe esse lado de um prédio onde geralmente exibem algum anúncio?
quem passeia por buenos aires, se presta atenção a esta lado menos bonito e quase invisível, vai se dar conta que tem sempre alguém que manda abrir ali uma janela clandestina para poder ter um pouco mais de luz em seus pequenos e sufocantes apartamentos. é esta estrutura arquitetônica que batiza um dos meus filmes preferidos da vida, medianeras – buenos aires na era do amor digital, dirigido por gustavo taretto, em 2011. e pra que serve uma newsletter se não para escrever sobre o filme que a gente gosta, não é não?
aqui, buenos aires serve como pano de fundo para uma história que transforma a desordem arquitetônica da metrópole em um reflexo da fragmentação emocional contemporânea. gosto de pensar que este filme está para a capital argentina como o fabuloso destino de amélie poulain está para paris ou bonequinha de luxo está para nova york – uma obra que captura não apenas o espaço físico, mas a influência que ele tem nas características e comportamento dos personagens.
os protagonistas vivem próximos, dividem espaços, respiram o mesmo ar, mas não se encontram. e esse é o ponto do filme: que tão imersos em seus próprios mundos duas pessoas podem estar para não ver o que surge a sua volta? martin (javier drolas, meu crush) é um web designer introvertido e refém da tecnologia está tentando superar seus medos de altura, multidões, de ficar doente e mais uma pá de fobias da cidade grande. mariana (pilar lopez ayala) é uma arquiteta desencantada e claustrofóbica, tentando superar um término de namoro, que preenche os vazios de sua vida com histórias imaginadas e maquetes.
Martin e Pilar habitam apartamentos minúsculos, como cápsulas de isolamento, afastados do mundo e um do outro, apesar da proximidade física. suas existências são paralelas, separadas por medianeras que bloqueiam a vista, sufocam a luz e servem como alegoria para os muros invisíveis que constroem ao redor de si mesmos.o filme provoca ao questionar a ilusão da hiperconectividade. em tempos de redes sociais e aplicativos de encontros, nunca foi tão fácil encontrar alguém, mas nunca foi tão difícil se conectar de verdade. como se a tela de um celular fosse também uma parede nos separando do mundo lá fora.
é curioso notar que o que parece moderníssimo em medianeras já envelheceu, já que o filme é anterior à era dos smartphones e do tinder, quando tentávamos nos conectar através de mensagens no msn, fóruns e e-mails trocados com expectativa. havia uma demora nas respostas, um suspense involuntário que hoje parece impossível em tempos de notificações instantâneas. talvez houvesse mais espaço para imaginar, para criar histórias antes mesmo do encontro acontecer – e essa espera, essa construção lenta, era parte da magia. talvez eu esteja romantizando o passado. talvez a ansiedade sempre tenha estado lá e só têm aumentado desde então.
a buenos aires de medianeras é uma cidade de contrastes: bela e caótica, acolhedora e opressiva. a câmera passeia por fachadas, corredores estreitos, janelas que escondem e revelam vidas anônimas. a cidade não é apenas cenário, mas personagem, pulsante e indiferente, como se perguntasse a martin e mariana – e a todos nós – se ainda sabemos nos reconhecer em meio ao concreto e aos pixels.
sempre que recomendo esse filme para alguém, acabo assistindo de novo, como se precisasse reviver cada detalhe, redescobrir cada cena e sentir novamente o impacto das reflexões que ele provoca. já cheguei a caminhar por buenos aires para encontrar os locais onde foram gravadas algumas cenas, como se, de alguma forma, pudesse me aproximar um pouco mais daquele universo e da poesia silenciosa que ele carrega.
além da fotografia e dos diálogos reflexivos, a trilha sonora é um elemento fundamental na construção dessa atmosfera melancólica e esperançosa. a canção true love will find you in the end, de daniel johnston, surge como um sussurro de otimismo em meio à solidão dos personagens, uma promessa de que, apesar de tudo, o amor verdadeiro encontrará seu caminho. no fim, medianeras nos lembra que, apesar dos muros erguidos pela modernidade, ainda há frestas por onde a luz entra. ainda há encontros possíveis, ainda há amor.
basta ter coragem de abrir a janela.
(este texto é o primeiro de uma série que pretendo escrever sobre a cidade de buenos aires, da qual eu vou, pouco a pouco, me despedindo)
antes de ir, um recado
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júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Eu amo esse filme também. Tanto que minha cachorrinha se chama Corina e quando estive em Buenos Aires fiz questão de ver a basílica, o edifício e a famosa Pasaje Corina Kavanagh heheh.
Eu amo esse filme! Além da questao do amor, fico pensando em outras solidoes urbanas: faz seis anos que vou pra mesma academia, estao sempre as mesmas pessoas e nao sei seus nomes nem converso com elas. Minha janela do apartamento dá pra outra janela, sei a rotina do vizinho completamente, mas também nao sei seu nome e quando nos encontramos é apenas um frio "bom dia". Nem sequer uma conversa de elevador sobre o tempo.
Mas voltando à questao do amor, seria interessante se na época do filme já tivesse tinder e etc. Porque sinto que essas apps aprofundaram ainda mais essa questao: a gente vai passando como se tivesse folheando um catálogo de perfumes e quase nunca se conecta com ninguém.