não me diga mentirinhas
#98: é fácil ludibriar quem já embarcou rumo ao delírio e ja até sentou na janelinha. acreditar é uma decisão e quase ninguém gosta de voltar atrás
olá vocês!
a cerimônia do globo de 2024 tem causado um furacão no noticiário da colômbia. isso porque a vitória do filme o menino e a garça, de hayao miyazaki como melhor animação teve um sabor especial para o país. há um tempo saiu em toda as mídias locais os logros da ilustradora colombiana geraldine fernandez. ao concluir o sua formação, ela ouviu de professores que seu trabalho lembrava muito o estilo dos estúdios ghibli, o que a animou a buscar uma bolsa de estudos no japão. qual não foi a surpresa quando ela foi convidada a colaborar com a famosa produtora de miyazaki.
o sucesso de o menino e a garça nos golden globes fez o nome de geraldine ir parar nas manchetes e logo, pessoas entendidas do assunto começaram a levantar a lebre. ela afirmava ter feito 25 mil ilustrações para o filme, o que daria, por baixo, mais de 20 minutos do longa. bem difícil, convenhamos, para uma ilustradora iniciante. logo, ela voltou atrás e disse que estava exagerando, foram só uns 200 frames. e tinha mais. geraldine a princípio disse, em entrevistas e em palestras universitárias ter se reunido com o diretor japonês três vezes. depois ela disse que na verdade foram videochamadas. algo errado não estava certo.
centenas de tiktokers se dedicaram a desmentir geraldine ponto por ponto e investigas sua farsa. com a pressão, ela por fim confessou que: 1- nunca trabalhou com os estúdios ghibli; 2 - os certificados que ela apresentou e que “provariam” sua história, eram de um curso livre de cerâmica (estavam em japonês e é claro, ninguém contestou) e 3- ela só queria impressionar seus amigos mais próximos, mas a história foi se espalhando e como quem conta um conto aumenta um ponto, quando ela viu, já estava na boca do povo.
o curioso é que em seu comunicado e em entrevistas posteriores, geraldine não assume que mentiu, senão que tudo foi um “exercício” e que a “ficção” saiu de seu controle. isso me fez lembrar outros casos famosos em que a “ficção saiu do controle”. lembra quando a atriz isis de oliveira disse que estava namorando o galã george clooney? e quando a grávida de taubaté enganou por semanas os apresentadores do hoje em dia da record? e o mili vanili que ganhou até premio fingindo que cantava?
nesses casos, além de aumentar o folclore da crônica de celebridades, passado o tempo, não houve maiores danos aos envolvidos. perigo mesmo é quando a mentira ganha contornos trágicos como o famos caso da escola base, em que a vida de uma família foi destruida por acusações de abuso infantil em uma cobertura precipitada da imprensa e uma conduta irresponsável da polícia.
este texto não é um chamado moral aos malefícios da mentira, ela faz parte da vida e muitas vezes é um artifício necessário. não posso julgar se é o mais correto, cada um que responda por si. mas o que não dá pra fugir é do peso de lidar com as consequências, seja de uma balela inocente ou de uma mentira cabeluda. há uma parábola sobre a verdade e a mentira que dizem ser judaica (não achei uma fonte da origem e não vou ajudar a espalhar o que pode nem ser verdade):
“certo dia, verdade e mentira se encontraram. a mentira diz à verdade: “está muito bonito hoje”. verdade, desconfiada, olha ao redor, vê o céu limpo, constata que o dia é realmente bonito. passado mais um tempo a mentira diz “está fazendo muito calor”. a verdade concorda e nota que a companheira está dizendo a verdade. passam muito tempo juntas até chegarem à beira de um poço. mentira sugere à verdade: “a água está muito agradável, vamos tomar banho juntas!” mais uma vez desconfiada, verdade toca na água e confirma que ela é realmente agradável. despem-se e começam a nadar.
de repente, mentira sai da água, veste as roupas da verdade e foge. a verdade sai do poço e ciosa de sua reputação se recusa a vestir as roupas da mentira, deixadas para trás. certa de sua pureza e inocência, nada tendo do que se envergonhar e não tendo opção, saiu nua. ao ver a verdade completamente nua, o mundo a encara com desprezo e raiva. a pobre verdade retorna ao poço e desaparece para sempre, escondendo sua vergonha. desde então, a mentira viaja pelo mundo tranquila pois é mais fácil aceitar uma mentira vestida como verdade, que aceitar uma verdade nua e crua.”
ninguém está a salvo de acreditar numa quimera, num engodo, numa fake news. mas eu acredito que em uma parte bem grande desses casos, a gente embarca já não querendo ver a verdade. os jornais da colômbia abraçaram a mentira da ilustradora porque tinham o desejo de ver o país em destaque no cenário mundial. os jornais compraram o caso de isis de oliveira porque queriam embarcar num conto-de-fada. edu guedes, chris flores e companhia queriam os pontos no ibope que os quadrigêmeos trariam. os jornais que cobriram o caso da escola e a polícia queriam ser vistos como heróis defensores das crianças.
é fácil ludibriar quem já embarcou rumo ao delírio e ja até sentou na janelinha. acreditar é uma decisão e quase ninguém gosta de voltar atrás. na faculdade, um grupo de amigos decidimos contar às pessoas que um dos nossos colegas, o kaito tinha feito parte da última temporada de chiquititas fazendo o personagem deco (que nunca existiu). e não satisfeitos, editamos a wikipedia da novela pra colocar seu nome. logo, fanpages e blogues dedicados passaram a creditar seu nome como parte do elenco.
até hoje o fantasma de deco persegue o kaíto: mestrando em uma universidade nos estados unidos, volte e meia ele cruza com seu nome ligado à novela da qual nunca fez parte. mas o engraçado é que quando a gente dizia que era tudo zoeira as pessoas se ofendiam, não porque haviam sido enganadas, mas porque elas tinham certeza que tinham visto o kaito criança na novela. (em tempo: a idéia era somente brincar com o absurdo de um ex-ator mirim estudar com a gente numa universidade pública, a gente nunca quis tirar nada de ninguém)
na maioria das nossas relações a gente ou conta mentiras, ou compra as histórias meio furadas dos outros ou mente pra gente mesmo. desde platão que a preferimos nos guiar pelas sombras que simplesmente sair e ver a luz. encarar a realidade dos fatos não é simples e sempre vem acompanhadas de conversas incômodas. mentiras podem até nos trazer algum conforto, mas é no incômodo que a gente cresce.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
essa fake news do kaito é inesquecível hahahaha
adorei a forma como você conectou os assuntos: a história da jornalista, a fábula, sua própria história. adorei o texto, cheio de verdades e gostosinho de ler! bjs