não chore por mim, argentina
#90 - o país que julgou os algozes da ditadura e possui a força das mães da plaza de mayo não vai se render diante de um bobo da corte.
hola, que tal?
10 da manhã de um domingo preguiçoso. pré-feriado. desperto de sonhos intranquilos. passei a noite sonhando com a contagem dos votos. o infame voto manual, onde cada eleitor coloca num envelope um folheto do candidato de sua preferência e mete em uma urna de papelão. 2023 e o tililiiiinnn eletrônico tá longe de ser realidade, mesmo na gigante e mezzo moderna buenos aires.
desperto no meio de um pesadelo: javier milei havia sido eleito. ufa, foi só um sonho! sorrio, abraço meu marido, penso no nosso casamento, há duas semanas. que delícia ter direitos assegurados por lei. que bom saber que estamos avançando. tomamos café da manhã falando sobre o grande evento do dia. hoje tenho um dever cívico que não posso falhar, mas não é votar. os imigrantes participamos das eleições em âmbito distrital (governador, deputado, chefe de governo), mas não para presidente.
o grande evento é receber amigas para o almoço. vou cozinhar frango com pequi e quero apresentar a iguaria goiana para o mundo, que no caso são meu marido colombiano, duas amigas venezuelanas, uma carioca e outra paraense. hoje eu tenho a missão de honrar meus antepassados a bandeira do meu país goiás. faço uma videochamada com minha mãe pra tirar todas as dúvidas. o cardápio tá decidido há dias e as compras feitas. frango refogado com milho e pequi, angu de fubá, arroz e feijão (por supuesto), salada de tomate e pepino. e coquinha gelada.
coloco o hino do meu estado no spotify (infiel, da marília mendonça) e toca a cozinhar a comida mais deliciosa que minhas mãos já produziram. hoje eu não aceito menos que gente repetindo, com a cara suada, afrouxando o botão da calça pra poder seguir comendo. empapuçar a gente é minha linguagem do amor. ouvir “meu deus, isso tava muito bom” é saber que sou amado. chegam as amigas, comemos, missão cumprida. ninguém mordeu o pequi, não precisamos ligar para a emergência.
lá fora, um dia termicamente perfeito, um céu azul, nuvem de desenho animado, branquinha. tomamos cerveja, caipirinha, falamos sobre as comidas de cada país e de diferentes regiões do brasil. falamos de muitas coisas pra falar de uma coisa só: amamos a américa latina. minhas amigas têm roupas para consertar e vestidos para encomendar, essa foi a desculpa da reunião. victor, el maridón estilista saca a fita métrica e toma medida de todas. o clima é de uma felicidade desconfiada.
as amigas se vão, ajeitamos mais ou menos as coisas “deixa isso aí, amanhã é feriado e a gente arruma”. a caipirinha deu uma leseira. me deito pra uma sonequinha. acordo sobressaltado e javier milei é eleito presidente. quis chorar, mas não pude, pelas redes vi amigos tristes, mas não rendidos.
não é um pesadelo, não há ranger de dentes. é algo que pode acontecer dentro de uma democracia, já aconteceu no brasil e acaba de acontecer aqui. e para ser bastante franco, apesar do horror que representa esse passo para os dois países, eu entendo mais o que levou às pessoas a votar em milei que em bolsonaro. não falamos sobre política à mesa hoje, mas era meio evidente que, entre venezuelanos e brasileiros tivéssemos algumas diferenças. eles têm o trauma de um governo de esquerda que arruinou o país e nós temos o mesmo de um governo de direita.
a maioria dos que elegeram milei não é protofascista que odeia direitos, é antes de tudo uma gente desesperada. o candidato em quem eu votaria, sergio massa é um democrata, com bons projetos ao futuro e com condições de colocar ordem na casa. mas ele é o candidato do governo, que termina sem aprovação popular, num dos períodos mais tristes da história, com inflação na casa dos três dígitos e um empobrecimento recorde. é o candidato certo no partido errado.
e a outra opção é tudo aquilo que está sendo alardeado por aí, um bufão sem um programa de governo e sem dizer como vai fazer tudo que tem prometido. e com um discurso perigoso de negacionismo climático, simpatia pela ditadura e ameaças de cortar os parcos subsídios que mantém milhares de famílias se alimentando. fora o ódio à cultura, a direitos das minorias vulneráveis e a mulheres em geral. é basicamente um dia do cabelo maluco todo dia, pelos próximos quatro anos.
mas nem tudo se resume a nós versus eles. não é como se metade do país fosse cruel e quisesse que a outra metade fosse à merda. as análises dos especialistas brasileiros que vi por aí erram muito em não considerar os momentos políticos dos dois países. o brasil passou por um golpe que freiou seu período de progressismo e onde os programas sociais se mostravam eficientes. a argentina chegou aqui com governos que avançaram pautas importantes mas meteram os pés pelas mãos em coisas fundamentais como avanço econômico e enfrentamento da inflação.
é uma situação limite e com massa no poder a vida tampouco seria um morango. é meio cíclico nos governos de quase todo mundo em algum momento alguma guinada à extrema-direita. se não fosse agora, seria nas próximas eleições. mas pelo lado bom, nem o trump, nem o bolsonaro, com muito mais apoio se reelegeram. a melhor saída pra se livrar do facismo é fazer as pessoas verem que ele não funciona.
não vou chorar por você argentina. não chore por mim. bem, podemos chorar um pouco, a gente não é de ferro, né? mas amanhã, já sabem, todo mundo acorda e vai à luta como todos os dias. fortalecendo os seus, ignorando os idiotas e combatendo os maus. nós pudemos sobreviver, a argentina também vai. e com a alegria acumulada de quando foram campeões mundiais, vão passar por mais este momento sombrio. um país com um histórico combativo como o julgamento dos algozes da ditadura e a força das mães da plaza de mayo não vai esmorrecer diante de um bobo da corte.
consideremos este momento como uma traição à tradição democrática. é difícil processar, mas sem traição não há tango e sem tango não há argentina.
mudando de assunto
agora que estamos aqui já dobrando o cabo da boa esperança de 2023 e simone nos aguarda ali na esquina perguntando “o que você fez”? a gente podia combinar aqui um negócio: arvore de plástico com nevinha de mentira na ponta é um troço muito cafona, vocês não acham não? vamo quebrar essa tradição jacu e começar a celebrar natais mais tropicais, combinando com o clima cada vez mais escaldante desta época.
nunca fui fã de rbd, quando rolou o fenômeno eu já eda um adulto triste que trabalhava muito e passei ao largo de quase tudo sobre a novela e a banda. mas dia desses fui ouvir as musicas e devo confessar que ser o parecer é uma música muito boa. irresistível até, a letra bem feita, melodia viciante. amei.
vou cagar uma regra aqui: tô numa preguiça imensa de charge apócrifa. qualquer tragédia e tá lá os oportunistas de plantão caçando like com desenhinho fofo. o último que me deu grilo é a monica consolando a mafalda chorosa. logo a mônica, cujo criador faz questão de não se meter em política e faz a linha isentão. se é charge de celebridade morta, com asinha chegando no céu, aí o ranço aumenta por 10. charge tem que ser inteligente, autoral, ácida, não essas bobagem sentimentaloide.
em compensação, se você não segue a laerte, tá perdendo pérolas non-sense e por que nao, poeticas, como essa aqui:
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Ótimo texto como sempre, Júnior! Eu vi as notícias sobre o resultado já pensando "eita, como será que vai ser a edição de cinco ou seis coisinhas dessa semana?". Muito bom ver um ponto de vista de quem está aí, ao invés de ficar só nas análises do jornalismo brasileiro
É, Júnior, momentos que geram indignação mesmo. Certamente Milei não irá se reeleger e nem conseguir indicar um sucessor. São 4 anos de pesadelo, de abrir os jornais e ouvir/ler só bobagens proferidas pelo cara, muitas dúzias de absurdo, mas passa. A Argentina vai sobreviver 🩵