minha penny lane
#134: memórias de uma infância de colecionar figurinhas, brincar na rua sem asfalto e comer carne de lata
olá vocês!
como muita gente, eu conheci os beatles através das versões tupiniquins, como hey jude, do kiko zambianchi e eu te amo, versão de zezé di camargo e luciano para and i love her. estamos condenados a conhecer as músicas certas por vias tortas. bem depois eu me apaixonei pelos caras. das músicas fofinhas da fase boy band com cabelinho de cuia às mais psicodélicas da fase das viagens de ácido, eu gosto de quase tudo. e uma das minhas preferidas é penny lane, que eu achava que era uma balada em homenagem a uma namoradinha do paul, até que descobri que era na verdade sobre a rua em que ele morou na infância. o que convenhamos, torna a canção ainda melhor.
eu também tive uma penny lane, mas não tinha nome de garota, era um número. rua 70, na vila finsocial, periferia de goiânia, onde vivi os meus primeiros oito anos. era um bairro novo, ainda não tinha asfalto, saneamento básico, nada disso. era uma rua pequena com umas 15 casas de cada lado, que dava pra uma rua de comércio. olhando pelo google maps hoje, ela parece bem menor do que eu imaginava. era a rua onde crescemos, meus irmãos e eu, e nosso cachorro dick, que era um vira-lata descomunal que me fazia sair gritando, cada vez que fugia. eu morria de medo da carrocinha pegar ele.
tirando a carrocinha, não havia perigo nenhum naquela vizinhança, a gente passava o dia brincando na rua, de pique esconde, salva-bandeira, pipa, bolinha de gude, pai da ra e bete. você sabe o que é bete? é um jogo entre duas equipes. cada equipe tem um rebatedor com um bastão de madeira (geralmente um cabo de rodo) e um arremessador. tem um monte de regras doidas e é bem perigoso pra quem está assistindo. me disseram uma vez que é um tipo de beisebol. os meninos da rua 70 poderiam então ganhar de lavada do new york yankees.
nossa casa era a quarta da rua. não sei se é assim com todo mundo, mas é a casa da minha primeira infância à que eu recorro toda vez que leio alguma história em que tenho que imaginar uma casa. se não descrevem a casa com precisão, eu penso exatamente na minha. a porta da sala, a posição dos móveis, o lugar das janelas, tudo. já morei em tanta casa que nem me lembro mais, mas é essa a casa-fundamento do meu consciente.
era uma casa simples, e olhando hoje, bem menor que o que parecia, mas é onde tive minhas primeiras memórias, boas e ruins. era nada mais que sala, copa, cozinha, banheiro, quarto dos meus pais, o dos filhos (o gil, o dedé e eu) e o quarto da bagunça. não havia nada de exatamente especial. mas acho que o que me atrai nessa casa, nessa rua e nessa história é por ser o local onde nós cinco estivemos juntos (e felizes) por mais tempo.
outra coisa que penso, olhando agora para o google street view percebo que a vila finsocial era realmente mais pobre do que eu lembrava em minha infância. não que em algum momento eu achasse que era rico. quer dizer, era um bairro recém inaugurado, criado pelo governo para acalmar trabalhadores que ocupavam áreas ociosas. entre humilhações e violência policial, o caminho até chegar à posse do terreno foi árduo.
quando eu nasci, meus pais haviam acabado de receber do governo a escritura do terreno. bairros de mutirão pipocavam nos arredores das grandes cidades nos anos 80. o governo demarcou as ruas e só, levou um ano para que chegasse energia elétrica, o asfalto só apareceu depois de nos mudarmos e não estou certo se a rede de esgoto chegou em algum momento. tinhamos cisterna e fossa séptica. o barulhinho da bomba de água era parte dos nossos dias.
com muito custo, meu pai fazia mutirões de fim de semana para construír uma barraco de lona, que logo virou um barracão e em seguida, uma casa. enquanto isso, trabalhava de mestre de obras, segurança, motorista, enfim, o faz tudo do homem cuja família era dona de metade de goiás e muito tempo depois se viu envolvida em escândalos por manter pessoas em trabalhos análogos à escravidão. um dos filhos hoje é governador do estado.
a gente era mais pobre do que eu me lembrava. talvez o pequeno júnior não compreendesse que o mundo era dividido em gente que ralava pra ter o mínimo (meus pais) e gente que nunca passava vontade de nada (os patrões do meu pai).
voltando à casa, nós tinhamos um quintal enorme, com pé de amora, pé de manga, outra árvore que eu não me lembro bem de quê. da amoreira eu me lembro bem porque levei algumas surras do meu pai de vara de amora. e um galinheiro que podia ser uma casa, uma escola, um quartel, uma oficina, o que quer que fosse que a gente tivesse brincando naquele momento. a gente também costumava passar tardes inteiras construindo estradas e cidades com restos de tijolos, por onde passavam nossos carrinhos feitos de lata com pneus de borracha de chinelo velho.
na casa da frente morava o seu fidelcino, um baiano bravo com uma risada bem alta. a família dele acudiu muito a nossa quando as coisas não iam bem. dona maria, sua mulher, (também chamada de dona maria do seu fidelcino) fazia carne de lata, umas almôndegas fritas que eram guardadas na banha em latões por meses. eu consigo sentir o cheiro e o gosto disso agora, se eu fechar os olhos e aguçar a memória.
ao lado do seu fidelcino ficava a sueli, uma mulher fumante que além do fumacê tinha outras duas marcas registradas: ter sempre batom no dente, num tom de vermelho bem vivo, e dar em cima do meu pai na cara dura sempre que ele saía na rua. meu pai era um dos únicos a ter carro na rua inteira. ele vivia trocando, pois fazia gambira de carro usado pra ajudar na renda. ele teve passat, del rey, chevette, belina, parati. o que eu mais gostei foi um opala amarelo ss.
um dia, um besouro entrou no ouvido da sueli no meio da madrugada. e ela veio correndo bater no nosso portão, pro meu pai levar ela ao postinho. e mesmo com o ouvido quase estuporado, ela arrastou a asa pra ele. claro que minha mãe foi junto. do nosso lado direito morava dona vilma, que tinha uma porção de filhos, um deles vivia fugindo da polícia. um dia morreu baleado, foi a primeira vez que eu vi alguém num caixão na minha vida.
do outro lado, morava a família da viviane, meu crush de infância. naquela época ninguém falava crush. aliás não falava nada, quando alguém falava que a gente namorava eu ficava com muita vergonha e entrava pra dentro de casa encabulado. a gente nasceu com poucos dias de diferença e cresceu brincando e brigando juntos. a casa dela cheirava a banha de porco e eu me lembro exatamente o dia em que a mãe da viviane morreu, de câncer. foi a segunda pessoa que eu vi em um caixão. foi daí que eu passei a associar cheiro de banha com morte.
na casa depois da viviane tinha o eurípedes e a edna. eu passava tardes inteiras brincando na casa deles com o anderson e a aline, filhos deles. eu me lembro que sempre tinha pão com manteiga e chá de erva-cidreira na merenda. mais abaixo morava o diego, meu melhor amigo, que era filho único e tinha mais brinquedos que alguém poderia ter. ele tinha amigos imaginários também e eu era o único, além do diego a saber os nomes deles.
mais para o fim da rua morava o seu rafael, que tinha uma casa muito grande, a mais bonita da rua. na nossa cabeça ele era rico. uma vez, todos os garotos da rua entraram de penetra na festa de casamento da filha dele. eu me lembro bem que dancei baby can i hold you de rosto colado com uma menina. meu primeiro bailinho. do fim da rua descambava para um córrego onde meu pai levava o carro pra lavar e a gente aproveitava pra nadar. na volta a gente ia encharcado, no porta-malas aberto e o dick, mais molhado ainda, correndo atrás do carro. tudo que dizem sobre os pais dos anos 80 serem vida louca é verdade.
virando a rua a gente saía na avenida de comércios, leia-se um peg-pag, uns botecos de mala muerte e umas lojinhas de quinquilharia. uma vez meu pai me deu uma nota de mil cruzeiros pra comprar uma tesourinha escolar. eu fui na venda da dona creuza e comprei a tesourinha, que era baratinha e o resto todo em figurinhas. é que eu queria achar a figurinha premiada e ganhar um carro de corrida. na minha cabeça, o troco era pra isso mesmo, não parecia tanto dinheiro assim.
quando cheguei em casa com aquela imensidão de figurinhas, meu pai ficou doido. botou o cinturão na mesa e me fez abrir pacotinho por pacotinho com uma promessa: se nenhuma viesse premiada eu iria apanhar muito. por sorte, no último envelope tinha um prêmio, um cinzeiro. ninguém em casa fumava, mas era um prêmio, o combinado não sai caro. um tempo depois recebemos pelo correio uma ovelhinha de porcelana com uma carrocinha com espaço para cinzas de cigarro.
a bichinha existiu até dia desses na casa da minha mãe, como uma testemunha de uma surra que não levei. a rua 70 está nos meus ouvidos e em meus olhos. é o cenário de memórias mornas e ingênuas, uma infância de colecionar figurinhas, brincar na rua e comer carne de lata.
ps: este texto é uma reedição. neste momento estou em férias em alguma praia entre santa marta e cartagena, na colômbia. vejo vocês em três semanas. enquanto isso, aproveitem o arquivo da newsletter, se você ainda não leu ou quer reler algum dos seus textos preferidos. um beijo e até lá!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
era cada prêmio antigamente, né? 😂😂😂
boas férias!
Ah meu Deus, a carrocinha 😱😱😱😱