meia lua inteira
#187 - ela havia deixado de sentir qualquer coisa, seja dor ou alegria. logo um buraco no meio do peito não era nada, mas pelo menos era alguma coisa.
olá vocês!
um dia, leonor acordou e percebeu que havia um buraco no peito.
não era modo de dizer, desses que a gente usa quando está triste tipo “sinto um vazio aqui dentro”. era um buraco de verdade, bem no ponto onde, em outro corpo, repousaria o colar do signo.
não era feito de dor nem de falta. era, justamente, o contrário: um buraco de não sentir.
não doía, não latejava, não deixava à mostra nenhum pedaço de dentro. só estava ali. um vazio redondo, calmo, no formato exato de uma lua cheia.
não era grande, mas também não se podia chamar de pequeno algo que nem deveria existir. dava até pra ver o que havia do outro lado. e não fosse o vento atravessando seu corpo de vez em quando, talvez nem tivesse notado.
há muito tempo, leonor não sentia nada. nem dor, nem alegria. por isso, o buraco, embora fosse nada, acabou virando alguma coisa.
no começo, leonor tentou esconder o buraco com roupas. gola alta, lenço, camisa abotoada até o pescoço. depois percebeu que ninguém parecia muito impressionado. no mercado, a moça do caixa só perguntou se ela queria nota fiscal. no ônibus, o cobrador olhou por meio segundo e seguiu passando o troco. um homem chegou a elogiá-la: “olhos bonitos, você tem”, sem nem mencionar o vão no centro.
mas leonor sabia. percebeu que o buraco fazia barulho quando respirava mais rápido. um chiado, como um assobio torto. às vezes, pequenos papéis se perdiam ali dentro: um recibo, um poema, um ingresso de cinema. na fila do banco, o senhor da frente deixou cair uma moeda. ela se abaixou para pegar e, ao levantar, sentiu o vazio vibrar.
era como se o chão tivesse sussurrado algo direto dentro dela. ninguém mais ouviu.
na terapia, tentou explicar: “é como se eu tivesse sido furada por uma furadeira de ideias ruins.” a psicóloga anotou alguma coisa e recomendou mindfulness.
tentou de tudo: rolha de vinho, massa de modelar, silicone industrial. pensou em tatuar um redemoinho em volta, transformar em arte contemporânea. depois achou que talvez fosse melhor aceitar. ou esconder. ou esquecer. ou nada disso.
um dia, num encontro, um rapaz chamado joão comentou: “achei estiloso esse... detalhe. tu que mandou fazer, tipo um piercing?” ela riu. não sabia se era piada.
ele ficou curioso, e ela deixou que ele olhasse de perto, assoprasse, até gritasse pra ver se tinha eco.
leonor ficou imóvel, sentiu o corpo arrepiar. não era um arrepio bom.
no final, ele disse que queria vê-la de novo.
ela não respondeu. sentiu que talvez não quisesse ninguém por perto enquanto estivesse assim: de peito aberto, exposta.
na padaria, escolheu pão de leite.
na hora de pagar, percebeu que a moeda de um real que havia separado tinha sumido. devia ter caído no buraco.
pensou em pedir fiado, mas teve vergonha.
passou o dia inteiro sentindo o peso da moeda perdida no centro do peito.
e, de algum modo, isso a tranquilizou.
havia algo ali dentro, afinal.
no dia seguinte, leonor acordou com uma flor meio murcha brotando do peito.
era pequena, violeta desbotada, daquelas que nascem nas calçadas em setembro e ninguém sabe de onde vêm.
não tentou arrancar. deixou.
pegou o metrô das sete, já acostumada com os olhares breves.
ninguém ficava muito tempo encarando o vazio parecia dar tontura.
uma moça ao lado comentou, baixinho:
“tem gente que sonha a vida inteira com esse tipo de abertura.”
leonor fingiu que não ouviu. segurou o corrimão, fingiu equilíbrio.
no trabalho, alguém colou um post-it no buraco: “reunião às 11h”.
ela só percebeu no banheiro, ao retocar o batom. descolou com cuidado, achando graça. jogou fora.
o chiado voltou mais alto naquele dia.
teve um momento em que pareceu música de elevador. depois, lembrava aquelas bandas de flauta peruana no centro.
ela começou a rir. parecia loucura ouvir aquilo sozinha.
no almoço, pediu feijoada. não devia, mas pediu.
o garçom trouxe o prato, olhou o buraco por um segundo e perguntou se ela queria vinagrete.
na calçada, parou para observar um grupo de crianças desenhando com giz.
uma delas apontou para o buraco e perguntou se era de guardar segredos.
leonor respondeu que não sabia, mas já tinha encontrado um botão, uma flor e o nome de alguém escrito em letra cursiva.
a menina lhe deu um desenho: uma estrela de cinco pontas, amarela, torta, bonita.
leonor dobrou e guardou no bolso, sem deixar cair dentro do buraco.
à noite, sonhou que entrava em si mesma. escorregava pelo próprio vazio como quem desce um toboágua sem pressa — uma queda macia, por dentro de carne morna e úmida.
lá dentro, as vozes não gritavam. sussurravam seu nome como um acalanto vindo de todas as direções e de nenhuma.
no ponto mais profundo, percebeu que o vazio não era escuro.
havia uma luz suave, prateada, em forma de lua crescente, pulsando no ritmo de sua respiração.
acordou com a flor seca. retirou-a com cuidado, colocou num copo com água ao lado da cama.
a luz do sonho ainda se refletia no sorriso. voltou a dormir.
naquela semana, por insistência de uma amiga, marcou uma consulta.
o consultório era branco demais. o médico, um senhor de cabelo grisalho, franziu a testa assim que a viu.
“então... é isso?”
ela abriu a blusa.
“é isso.”
ele aproximou uma luz, colocou luvas, tentou medir com uma régua escolar. não alcançou o fundo.
“desde quando?”
“que eu tenha notado, uns dez dias. mas talvez desde sempre.”
“dói?”
“não.”
“sangra?”
“nunca.”
“já pensou em enxerto de cartilagem?”
ela riu.
ele coçou a barba, anotou no prontuário: “abertura torácica não identificada. possível malformação. possível fenômeno simbólico. encaminhar para psicossomática.”
antes de sair, ela perguntou:
“e se não for nada disso?”
ele respondeu:
“bom, então a medicina falhou em te classificar. não é uma doença. mas também não posso te garantir que está tudo bem.”
o encontro com maurício aconteceu numa terça-feira de chuva.
barbeiro, desenhista nas horas vagas, olhos de sono antigo.
se conheceram na fila do quilo, dividiram um guarda-chuva, depois um vinho.
não houve grandes promessas. só toque, calor, o tipo de silêncio que não assusta.
quando os corpos se misturaram, ela sentiu o buraco encolher.
não sumir, isso nunca, mas retrair como um músculo cansado de ficar alerta.
como se quisesse descansar um pouco.
ele passou os dedos ao redor, com cuidado. não perguntou o que era.
ela agradeceu em silêncio.
e foi ali, entre respiração e saliva, que sentiu algo inédito: o vazio dançava.
de leve. como uma folha na água. ondulava.
e, quando o prazer veio, inteiro e inevitável, ela jurou sentir o centro do peito vibrar como se alguém acendesse uma luz por dentro.
foi só um instante. mas foi.
nos dias seguintes, notou que o buraco se movia. mínimo, quase invisível. mas movia.
num café com uma amiga, rindo de uma piada boba, sentiu uma contração suave.
ouvindo uma música antiga no fone, o vazio parecia pulsar no tempo do refrão.
um cachorro veio correndo na calçada, e ela se abaixou pra fazer um carinho. não sabia explicar, mas sentiu que o buraco sorria.
uma criança passou e a chamou de “moça de lua no peito”.
ela olhou pra baixo e tomou um susto: o buraco estava menor, agora era uma meia-lua. minguante.
não era cura. não era mágica. mas agora ela entendia: era um ciclo.
em algum momento, o vão voltaria, talvez maior, talvez mais incômodo.
mas, assim como vinha, também passava.
havia momentos em que a vida, entre o pão, o gozo e o riso, parecia quase inteira.
e, nesses momentos, leonor também era. quase inteira.
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júnior bueno é jornalista e escritor. agora empregado (ufa!), mas ainda aceitando freelas e carinho em forma de compra de livro na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.


muito lindo, best 🥹
Que lindo!!