luz e mar
#104: minha mãe levou um tempo até curar seu coração, mas nunca parou pra lamentar. com ela eu aprendi que sempre há um novo dia.
olá vocês!
eu tinha 10 anos. um dia, eu acordei no meio da noite pra fazer xixi e quase tropecei no corpo da vizinha que dormia no chão da cozinha. me assustei, minha mãe levantou e disse: “a jovenita veio dormir aqui, bateu na porta no meio da noite, tive que dar abrigo, senão o chicão ia matar ela.” jovenita dormia exausta. parte da roupa rasgada, o rosto ainda sangrava, mesmo minha mãe tendo ajudado ela a se limpar.
foi a primeira vez que eu vi uma mulher espancada, não é uma coisa que se esquece assim. na outra noite, acordei com minha mãe discutindo com o chicão na porta da cozinha. pedia pelo amor de deus pra ele não bater mais na mulher. ele era um homem corpulento. trabalhava montando caixas de madeira para vender no ceasa. era um homem sorridente e educado. menos quando enchia a cara. então ele cismava que a mulher o traía e a violentava de todas as maneiras. aconteceu mais de uma vez naquele ano.
minha mãe viveu uma casamento de conto de fada durante 14 anos, nasceu pra ser a mulher de um homem só. filha de pastor, aprendeu e repetiu por muitos anos que “o que deus une, ninguém pode separar.” era uma maneira de se convencer que meu pai até podia pular a cerca, mas era para ela que ele voltava, que a família era o mais importante.
um dia, meu pai simplesmente foi embora. se enroscou com outra e acabou se apaixonando. minha mãe ficou tomando conta de três filhos homens, adolescentes. sofreu de quase morrer. sobreviveu. não sem ter que passar por um julgamento por parte da família e pessoas próximas. mais de uma vez ouvi pessoas dizerem a ela coisas como: “você precisa orar e se apegar mais com deus. ele pode restaurar seu casamento, depende da sua fé e da sua oração” ou “como esta mulher pode deixar esse homem tão bom ir embora?”.
não quero romantizar o quanto minha mãe sofreu. nenhuma mulher deveria passar por tanta privação e ser tão negligenciada, em um mundo onde um homem no mesmo lugar não sofreria o mesmo. mas quero sim deixar escrito o quanto a dona luzimar foi e continuou sendo forte. eu amo demais essa baixinha que tem luz e mar no nome.
o que importa é que minha mãe sobreviveu e a gente também. lá, naquela baixada do santo hilário, em 1993, onde delegacia da mulher era uma coisa rara e homem espancando a mulher era “coisa de casal”. a vizinhança passava o dia julgando a pobre mulher que voltava para aquele marido ou especulando porque a outra foi largada. era um inferno, mas foi lá que minha mãe se mostrou a mulher mais incrível do mundo.
depois de muito penar, a jovenita largou o marido. foi embora na calada da noite, só com os filhos e a roupa do corpo. soubemos tempos depois que ela tinha morrido, mas de outros males. minha mãe levou um tempo até curar seu coração, mas nunca parou pra lamentar. com ela eu aprendi que sempre tem um novo dia.
sexta-feira é 8 de março, o dia internacional das mulheres e há uma infinidades de mulheres que eu poderia citar aqui como lendárias, ícones. maria quitéria, dandara, joana darc, rosa parks, angela davis, elza soares, maria bethânia, rita lee, fernanda montenegro, frida kahlo, marie curie, carolina maria de jesus, conceição evaristo, marielle, erika hilton. nomes não faltam e nunca vai ser o bastante falar sobre elas.
mas hoje eu queria mesmo era falar destas duas mulheres, uma que é uma lembrança meio borrada de infância e a outra que é a mulher a quem eu amo mais que tudo (e apesar de tudo também). em nome dessas duas mulheres, jovenita e luzimar e de tantas outras, que eu venho lembrar que está chegando mais um dia 8 de março. e, não custa lembrar, não é uma data comemorativa, mas uma chaga que secou, uma cicatriz no meio da sociedade lembrando sempre que mulher é substantivo coletivo.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
um brinde a jovenita!
e abraços para dona luzimar 🩷
obrigada!