los hermanos
#40: um pequeno tratado sobre as peculiaridades do povo argentino e o que podemos aprender com eles sobre memória, verdade e justiça
olá tudo bem?
argentinos e argentinas parecem ser sérios e mal humorados. mas são engraçados e afetuosos, eu sou testemunha disso. aqui as pessoas se cumprimentam com beijinhos no rosto, independente do gênero e/ou orientação sexual. e sabe quem acha estranho e faz piada com isso? turistas do brasil. agora me diz, quem é que tem fama de ser frio e mal-educado? argentinos e argentinas. vai entender.
se amarram em uma festa. mas gostam mais da prévia, que consiste em ficar bebendo em casa até de madrugada e depois sair pra balada, já economizando na bebida. e nas festas de casamento, 15 anos, formatura, possuem a instituição carnaval carioca, que consiste em um set só de músicas do tempo do onça pra se dançar com acessórios coloridos. é a coisa menos carnaval e menos carioca que eu já vi, mas se divertem muito.
não podem passar ao seu lado, escutar seu sotaque brasileiro sem falar oi, bocê é brasilero, eu sabe falar portugués: ‘boce é um meniniño muito bonitchiño’. não podem resistir, os olhos brilham quando veem alguém do brasil. precisam te falar de todas as praias que visitaram e todas as caipirinhas que tomaram. não adianta dizer que eu sou de goiânia e que é capaz que conheçam melhor que eu o nosso litoral. não se conformam que alguém em sã consciência trocou o brasil pela argentina. noooo, brasil es hermoso, las playas, la música, uhhh y la comida, loco, qué es esa comida? mordendo o lábio pra dar ênfase.
amam dar ênfase. sobem o tom da voz em alguns decibéis. alongam uma sílaba, (paraaaaa, noooooo, ensééééééério?). juntam os dedos da mão e sacodem, como bons italianos que pensam que são. são obcecados por cachorros. eles, os totós, estão em todo lugar, conduzidos (ou conduzindo?) por madames em suas guias. desde minúsculos poodles a cães enormes, grandes demais para os apartamentos onde são criados. é muito comum ver os paseaperros (passeadores de cães) levando dezenas de doguinhos pelas praças e parques. já moda de recolher o cocô dos bichos ainda não pegou, infelizmente.
adoram falar. qualquer assunto, por mais banal que seja, rende horas jogando conversa fora, apenas pelo prazer de prosear. são os reis e rainhas do small talk. quer matar uma horinha conversando com locais? pergunte qualquer coisa, desde empanadas a política externa - e vá dando corda. são adeptos da tática de discordar pra concordar. simplesmente dizem “no, pero no es taaaann así”, para em seguida dizer o mesmo que você disse com outras palavras. mas ojo, que essa é uma maneira de mostrar que estão gostando do papo. quando dizem che, no te lo puedo creer, não quer dizer que você está mentindo, mas sim que está contando algo digno de admiração.
futebol então, é tema recorrente entre todo tipo de extrato social. taxistas velhos pais de família, patricinhas, garçons, políticos, absolutamente todo mundo fala sobre futebol na argentina. e mais que futebol e carne assada, a grande paixão do argentino é reclamar. do trânsito, do time, do governo, da umidade, do calor. e como putean quando reclamam. é de hijo de remil putas pra cima. porque filho da puta já não bastava, tinha que ser filho de mil putas e depois inventaram o filho das re mil putas, que é o fedaputa mor.
mas quer ver o caldo entornar é falar de política. não existe um assunto mais complexo e contraditório que a política argentina. porque se por um lado o povo é mais politizado que a média, por outro, há muita oscilação sobre o que de fato querem dizer nas urnas de quatro em quatro anos. são como o filho único de pais muito ricos, que uma hora quer uma coisa, outra hora quer outra.
comunismo, religião, banheiro unissex, nada disso é uma questão na hora de mudar de governo. o câmbio do dólar, o aumento dos preços, o poder de compra, essas são coisas que pesam muito mais. foi assim que em 2021 trocaram o ultra liberal maurício macri, que deixou o país super endividado com fmi no fim de seu governo, pelo peronista alberto fernandez, que deve sair no ano que vem, depois de não conseguir controlar a hiperinflação e a alta do dólar.
toda vez que eu ouço um brasileiro dizer que “o governo comunista da argentina levou as pessoas a passarem fome”, eu não sei se choro ou dou risada da desinformação. porque até em questões ideológicas a argentina é a diferentona do rolê. o presidente de direita nunca não fez nenhuma privatização e o de esquerda nunca estatizou nada.
descontando claro, o fato de que nenhum governo nas américas é comunista porque nenhum detém 100% de todas as atividades econômicas. até o presente momento, a grande maioria das empresas argentinas e as multinacionais que aqui investem (inclusive a dona google, que paga meu salário), são empresas privadas. deixa eu dar uma checada aqui, pera aí. é, continuam privadas mesmo.
estão em dificuldades econômicas? sim estão, como têm estado de tempos em tempos, em crises que parecem irreversíveis e de repente, têm uma temporada mais calma. mas voltando à crise, o salário mínimo em outubro deste ano é de 51 mil pesos argentinos, o que dá uns 2 mil reais. insuficiente para uma família se manter, mas não muito distante da realidade de todos os países da américa latina, incluindo o brasil. a fome e a pobreza não são uma questão de ideologia, são um projeto de governo, aqui, aí e acolá.
na argentina, as coisas são confusas pra quem olha de fora, porque os períodos políticos tem mais reviravoltas que no brasil, por exemplo. imagina que o governo está no poder agora evoca ao presidente juen domingo perón, que governou o país de 1946 a 1955 e depois em 1973/74. seus governos foram tão marcantes que deram origem a um movimento político que leva o seu nome. perón era amado pelo povo e tinha uma política forte de assistencialismo, embalado pela figura mítica de evita, sua mulher. mas sua biografia foi marcada pela caça aos comunistas e a relação ambígua, pra dizer o mínimo, com o sanguinário pinochet, ditador do chile. ou seja, o peronismo nunca nem chegou perto do comunismo.
depois há que se entender que o fascínio que os kirshner, despertam. tanto o falecido nestor, que foi presidente no período após a pior crise econômica da história argentina e ajudou o país a se reerguer, quanto cristina, que governou em seguida do marido, foi senadora e hoje é vice-presidenta da argentina. óbvio que presidentes populares - e populistas - geram paixões, contra e favor. e em se tratando de uma mulher com personalidade forte, o componente misoginia se soma ao sem números de acusações de má administração.
eu acho a história da cristina muito parecida com a da ju da dilma rousseff. não posso afirmar se ela é inocente ou culpada dos crimes de corrupção a que está todo tempo sendo escrutinada. mas é nítido que pra ela pesa muito mais que para todos os homens que ocuparam o cargo antes e depois dela. a favor dela e da argentina, aqui não há os componentes que levaram à extrema direita no brasil.
na argentina a bancada ruralista é incipiente, o militarismo não compõe um núcleo tão arraigado dentro da estrutura do governo e o país está muito longe da influência que as igrejas evangélicas exercem no brasil. talvez em 10 anos o cenário seja outro, mas por ora, todas as opções parecem bastante moderadas e progressistas, se comparadas ao bolsonarismo. outro componente é que na argentina, ninguém exaltaria um torturador em pleno plenário e sairia impune. seria um suicídio político e social.
a ditadura na argentina durou sete anos, um terço da do brasil. mas nesse pouco período de tempo, sequestrou, torturou e desapareceu com 30 mil pessoas. é, sem dúvida, o pior momento da história da argentina. este genocídio arrasou o país e gerou um profundo trauma. mas não ficou de todo impune. em 1985, logo depois da ditadura, levou ao banco dos réus os nove generais que chefiavam as juntas militares neste período. quatro foram absolvidos, outros tiveram penas entre 4 e 17 anos e dois generais foram condenados a prisão perpétua.
o filme argentina 1985 (amazon prime), fala sobre este julgamento. o filme tem lotado os cinemas e sempre termina com aplausos do público. é o candidato a uma vaga no óscar do ano que vem. mais que um bom filme de tribunal (como é bom o cinema argentino), com cenas épicas, feitas a medida pro ricardo darín brilhar, é um bom documento do horror que foi este período. os depoimentos das pessoas torturadas ora enojam, ora arranca lágrimas. nem tudo são flores, claro, a justiça foi morosa e deu algumas voltas, mas o ponto é que não houve anistia. não houve esquecimento, não relativizaram os crimes cometidos pelo estado.
o lema memória verdade e justiça segue mais vivo que nunca.
hoje, pelas calçadas das cidades estão sinalizados os locais exatos onde pessoas foram levadas de suas vidas para a morte. as mães da praça de mayo seguem buscando aos filhos e netos desaparecidos. netos a os centros de detenção e tortura são memoriais em homenagem às vítimas. como a esma, ex-escola mecânica do exército e hoje um museu onde se pode ler os relatos, ouvir depoimentos e passar pelos locais onde sadicamente homens e mulheres eram torturados. visitar a esma é uma experiência difícil, eu vomitei quando terminei o passeio, há uns anos.
mas ao final é uma enorme lição para o futuro e para outros países. porque um país sem memória está condenado a repetir os mesmos erros, uma e outra vez.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.