fera, bicho, anjo, mulher
#166: no dia 1º de julho, a música lembra: cássia eller partiu cedo demais, mas sua voz ainda rasga o tempo
olá vocês!
se você é fã do velho e bom rock nacional, é bem provável que, ao notar que o calendário marca 1º de julho, acabe cantarolando “sou fera, sou bicho, sou anjo, sou mulher…”. acontece com a gente, mesmo sem perceber. como se a música tivesse ficado impressa no calendário junto ao nome do mês. a canção, que ficou imortalizada na voz de cássia eller, foi um presente de renato russo. a música traz em si um mistério, a maior definição que cássia eller já teve e também uma história lindíssima. e como neste espaço nós adoramos efemérides, vamos falar sobre esta canção, sobre cássia e sobre a falta que ela faz na arte e na minha vida.
cássia eller entrou na minha vida nas tardes da globo, cantando malandragem, que embalava a adolescência da fernanda rodrigues na primeira temporada de malhação. o ano era 1995 e aquela voz que rasgava o peito e acariciava a pele ao mesmo tempo era a trilha sonora até mesmo de quem não se sentia como a garotinha da canção. só depois eu descobri que malandragem era do cazuza e do frejat. e beeeem depois eu descobri aquele disco, o terceiro de cássia, cheio de hits, o que a consagrou para o brasil inteiro.
tinha e.c.t., de nando reis, carlinhos brown e marisa monte, tinha socorro, do arnaldo antunes, lanterna dos afogados, dos paralamas, pétala, do djavan, try a little tenderness, do ottis redding e mais uma porção de música boa, bem produzida e interpretada com inspiração. e tinha 1º de julho, o tal presente de renato para cássia. um presente que chegou não em julho, mas em 28 de agosto de 1993, no dia em que nasceu francisco, o chicão, filho que ela gerou de uma relação breve com o baixista tavinho fialho, morto em um acidente seis dias antes do nascimento do menino.
conta a lenda que renato acompanhava de perto o drama envolvendo a gravidez de cássia, já que tavinho, músico de apoio tanto dela quanto da legião urbana, era casado. a cantora queria criar o filho com maria eugênia, companheira de longa data, ele queria ser parte, mas não queria que novos arranjos atrapalhasse sua relação oficial. enfim, o drama de “como a gente vai resolver isso agora?”. quis o destino que tavinho saísse de cena antes do bebê nascer, um componente trágico a mais na história toda e que inspirou renato a narrar na música: “não basta o compromisso, vale mais o coração, ninguém sabia e ninguém viu que eu estava ao teu lado então”.
porque a canção se chama assim é um mistério que queda sem resposta, pois todos os envolvidos já passaram desta para uma melhor. mas até isso faz a música ser tão especial. a letra é um inventário de renato sobre o que era o furacão cássia eller no palco e na vida. quando gravou o disco, ela se entregou de corpo e alma a estes versos. cássia, naquele ano, não apenas pariu um filho, mas deu à luz também uma nova versão de si. 1º de julho fala disso, ainda que nem queira. fala da força de uma mulher que amou, gestou, cantou e enfrentou o mundo sem pedir licença.
a morte de cássia eller partiu como um raio o fim da minha adolescência e derrubou com um assombro exemplar aquela história de amor, do brasil com a maior cantora daqueles tempos. como se tivesse data para acabar, cássia foi a maior dos anos 90 e viveu muito pouco além da década que a coroou. passados 24 primeiros de julho, a música brasileira não encontrou ainda outra cantora que representasse tão bem o papel marginal que ela imprimia em seu estilo, voz e repertório. o que se viu nas gerações que se seguiram a é que falta a veia libertária, criativa, ousada e avoz potente.
com uma versatilidade que ia do xote ao blues, do samba de breque ao rock, cássia imprimiu sua marca nas interpretações que muitas vezes se tornavam definitivas na sua voz. dona de um visual fora da norma e de modos que assustavam as plateias mais “caretas” (beber, cuspir no chão, exibir os seios, coçar os genitais), fora do palco cássia apresentava tamanha doçura e timidez que era possível acreditar que ao cantar, ela fosse tomada por uma força sobrenatural. tanto que o documentário cássia eller (2014), de henrique fontenelle abre com uma carta da cantora, lida por malu mader em que ela decreta: “você pode achar que me conhece. pode conviver comigo, ser meu amigo, pode até ir para a cama comigo, mas você não me conhece. mas quando eu cantar, aí sim você vai me conhecer.”
era cantando que ela desvelava seus medos, demônios internos, sua força e seu tamanho frente ao mundo. no palco, cássia se transformava, provocava, se entregava às canções e realçava o seu talento. talento que demorou a ser descoberto, parte pela repressão dos pais, parte pela enorme timidez da cantora que se recusava a soltar a voz em público. cássia rejane eller nasceu no rio de janeiro em 10 de dezembro de 1962. filha de um sargento do exército e de uma dona de casa, por conta da profissão do pai, morou em diversas cidades, até chegar a brasília, aos 18 anos. descobriu seu dom ainda adolescente, mas só despontou no mundo artístico em 1981, num espetáculo de oswaldo montenegro.
depois de anos se dedicando a tocar em bares da capital, foi encorajada por amigos a gravar uma fita demo com por enquanto, da legião urbana. o k7 chegou às mãos dos chefões da polygram, que na época, final dos anos 80, procuravam uma cantora de talento para lançar, na esteira do sucesso de marisa monte. mais que uma cantora, encontraram uma intérprete com bastante personalidade e versatilidade, e no ano seguinte saiu o primeiro lp, cássia eller. dois anos depois veio o marginal que também caiu nas graças da crítica, mas o sucesso só a encontrou no terceiro álbum, de onde saiu 1º de julho.
após alguns lançamentos ao vivo e de estúdio, com vendagens irregulares, em 2001, ela alcançou seu auge, se apresentando no que foi considerado o melhor show brasileiro no rock in rio daquele ano e emendou com uma turnê de shows por todo o país, além de participação em discos de artistas como djavan. mas o que a consagraria como a melhor cantora da sua geração estava por vir. lançado em abril de 2001, o álbum acústico mtv foi um fenômeno de vendas e popularizou a cantora, colocando várias músicas entre as mais executadas nas rádios. com um repertório que unia edith piaf, mutantes, beatles, chico buarque e nação zumbi num mesmo balaio, o disco foi considerado o álbum do ano e um verdadeiro canto do cisne.
mas nos momentos finais daquele que havia sido o “ano cássia eller”, a cantora sofreu um infarto no miocárdio repentino, aos 39 anos, faltando dois dias para o fim de 2001. cássia se foi em um sopro, finalmente reconhecida e consagrada. e o cenário musical brasileiro, que de tempos em tempos perde uma grande estrela no auge (dolores duran, maysa, elis...) ainda não se recuperou dessa perda.
chicão, para quem cássia eller canta “quero aprender com o seu pequeno grande coração, meu amor, meu chicão” é hoje o músico chico chico, a grata surpresa da atual geração de músicos brasileiros. seu nome veio da canção francisco, de milton nascimento, e sua guarda foi uma vitória dos laços de amor sobre os laços de sangue. e parte de sua história foi contada por um dos maiores compositores de seu tempo, renato russo.
com sua fúria convertida em música, cássia escreveu um dos mais belos capítulos da história recente da mpb e sua ausência deixou uma lacuna que ainda resta por ser preenchida. chico chico tem luz própria e ainda um grande caminho a trilhar. mas seu sorriso e voz não deixam dúvidas de seu dna. sei que é injusto comparar, mas mais injusto é não existirem mais a voz e o talento de cássia eller.
por hojé é só, mas se vocês gostaram e quiserem colaborar com esta publicação, considerem assinar a versão paga da news. também pode mandar um pix para jornalistajunuiorbueno@gmail.com.
e se você quiser deixar um recado só pra mim, com sugestão, pergunta, críticas ou elogios, acesse o formulário e dá um oi. alguns dos textos que escrevo vêm de idéias postadas lá.
júnior bueno é jornalista e escritor e tá procurando trabalho, por favor, mandem freelas ou comprem meus livros na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.
o acústico mtv da cássia, pra mim, é um dos melhores discos de todos os tempos. não tem uma faixa que seja menos do excelente.
a Cássia era um furacão! até hoje bebo demais do legado dela nas músicas.
lembro com muita nitidez de pegar o telefone sem fio - um luxo recém adquirido, de terceira mão - para ligar pro Guilherme, meu melhor amigo do colégio na época, e contar que a Cássia tinha falecido. lembro bem da sensação desoladora de que ninguém na minha casa poderia compartilhar aquela dor comigo, acho que foi meu primeiro grande drama interno adolescente.
<3
amei amei ler esse texto, junior. vc fez meu dia!