eu tinha tanta coisa bacana pra falar
#21 podia ter leveza e alegria aqui, mas nada é mais importante para escrever que: a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo numa câmara de gás
bom dia.
como diria paula toller, “maio, já está no final”. e como diria eu mesmo, “caramba, ainda é maio?”. ao mesmo tempo, tem o espanto de que amanhã já é junho, um pouco mais, acaba o ano. e pra piorar, este semestre chamado maio ainda vem com eventos que me atravessaram de uma maneira que me deixaram sem saber o que escrever. crise criativa? nem. eu tinha uma newsletter prontinha pra vocês, feita com antecedência, leve e pra cima. mas se neste momento em que estou escrevendo, não tem nada mais pra escrever que não seja:
a
a polícia
a polícia rodoviária
a polícia rodoviária de sergipe
a polícia rodoviária de sergipe matou
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo de jesus
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo de jesus santos
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo de jesus santos numa
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo de jesus santos numa câmara
a polícia rodoviária de sergipe matou genivaldo de jesus santos numa câmera de gás.
filmaram.
saiu no jornal.
a céu aberto, plena luz do dia.
neste mesmo maio em que há dois anos mataram george floyd.
mesmo maio em que houve uma chacina numa favela do rio
o mesmo maio que, em 1888 supostamente, foram libertas as pessoas negras deste país.
esta newsletter está triste e sombria e eu queria mesmo era gritar e devolver em fúria tudo que me dói desde o fatídico dia 27, em que um homem negro, desarmado e com problemas mentais foi algemado e depois colocada no porta-malas do carro, onde uma botija de gás lacrimogêneo foi atirada contra ele.
é gráfico descrever o horror? é, eu sei. mas não há maneira de passar por isto sem que seja assim, dizendo as coisas pelo nome: o assassinato foi um crime de racismo por uma polícia preparada para matar gente preta. gente que sente prazer em executar gente preta.
a esta altura todas as palavras já foram usadas, abusadas e em alguns casos, não precisavam nem ser proferidas. não há moral da história, não há conclusão, não há nada que se diga que diminua ou freie o assombro.
a polícia de sergipe matou genivaldo de jesus santos numa câmera de gás.
agora está dito e não há volta.
neste número, também deixo uma lista de músicas anti-racismo e uma homenagem ao gigante milton gonçalves, que voou pro céu dos bons atores. vem comigo.
HISTÓRIA
meteu um blackface e fingiu que não era com ela
em 1969, com apenas 4 anos de vida, a tv globo estava a caminho de ser a liderança absoluta que é hoje, ou pelo menos dava sinais que um dia chegaria lá. com um projeto de transmissão para o país inteiro e grandes produções, a emissora tinha também o passe dos maiores artistas e autores da época. um deles, o respeitado ator sérgio cardoso, foi contratado a peso de ouro para uma superprodução que seria o “e o vento levou” das novelas.
ambientada durante a guerra da secessão nos estados unidos, a cabana do pai tomás abordava a luta política, social e econômica entre escravos e latifundiários do sul do eua, tomando por base a vida do velho pai tomás um homem escravizado de bom coração, que passava de mão em mão, enfrentando senhores de engenho cruéis.
a novela tinha como protagonista feminina ruth de souza, uma atriz que já tinha uma grande experiência no teatro experimental do negro nos anos 40 e na companhia de filmes vera cruz nos anos 50. seu talento já havia sido reconhecido com a indicação como melhor atriz no festival de cinema de veneza, em 1954, disputando com com estrelas como katherine hepburn, michele morgan e Lili Palmer, para quem perdeu por dois pontos. não é exagero dizer que ruth é a maior atriz negra que este país conheceu. se não é tão ou mais incensada que a grande fernanda montenegro, nós já sabemos o porquê.
mas apesar de ruth, a novela era um equívoco sem fim. quem acha que em plena ditadura militar a globo iria levar ao ar uma novela protagonizada por pessoas negras tendo como pano de fundo a escravidão, pode fazer como o pedrinho e acordar. a novela não só tomava uma linha de negros conformados com sua condição e esperando que heróis brancos viessem a seu auxílio, como tinha no papel de pai tomás, o mesmíssimo sérgio cardoso, caracterizado com pintura no rosto, rolhas para alargar o nariz e peruca de cabelo crespo.
sim, a globo meteu um blackface e fingiu que não era com ela. foi toda uma celeuma porque, apesar de poucos atores negros com status para protagonizar a novela das nove, não é como se não existisse nenhum. e sobretudo tinha um que tinha talento de sobra para este ou qualquer papel: milton gonçalves. no (ótimo) documentário a negação do brasil, de joel zito de araújo, milton conta que o chamaram para limpar a barra da emissora sobre a escalação de sérgio:
“me chamaram num programa para dar um depoimento, não de desagravo, mas de apoio à indicação de sérgio cardoso. e eu, com muito medo e com muita adrenalina respondi ‘não não vou. nem que a vaca tussa. quando escalaram ele ninguém me perguntou o que eu achava. então eu vou aproveitar a oportunidade para dizer: eu não concordo’”
milton sofreu ameaças de demissão, que só não foi a cabo por medo de um escândalo maior. quanto à novela. ela foi vítima de outros revezes, que não somente a polêmica, como um incêndio que inviabilizou a produção. ignorada pelo grande público, o final de a cabana do pai tomás foi abreviado. mas eu resolvi lembrar deste episódio porque nunca é demais lembrar que se deixar, até hoje tem espertinho mandando um blackface ao vivo como se não tivesse nada demais.
e também porque é sempre bom lembrar que além de um ator tremendo, milton gonçalves foi um grande cidadão e vai fazer falta neste país.
HOMENAGEM
e zelão voou…
milton gonçalves, que morreu ontem, aos 88 anos, foi um dos atores negros mais importantes da tv brasileira, apesar de nunca ter tido a oportunidade de protagonizar uma novela. o ator esteve em 50 novelas e uma dezena de filmes lutou durante seus quase 65 anos de carreira para que os negros tivessem mais espaço na tv, no cinema e no teatro em um país onde mais da metade da população é preta e parda.
foi também militante do movimento negro e pressionou as produtoras a abrir o leque de papéis para os negros, que eram chamados apenas para representar servos ou escravos. teve bastante destaque em que pela primeira vez um homem negro fazia o papel de um profissional com carreira de sucesso na tv brasileira (seu personagem era um psiquiatra).
milton começou sua carreira em 1958 e, depois de se tornar famoso no teatro, foi escalado para as primeiras novelas produzidas no brasil e participou de novelas premiadas como irmãos coragem (que também dirigiu), sinhá moça, que lhe rendeu um emmy internacional e a favorita. também foi polivalente e multifacetado no cinema brasileiro em obras como macunaíma, o anjo nasceu e a rainha diaba, em que deu vida ao ícone marginal madame satã.
mas seu momento mais icônico no imaginário nacional foi como zelão das asas de o bem-amado, eternizado nas cenas finais da novela em que seu personagem alça voo com asas de tecido. o personagem foi criado por dias gomes como uma metáfora do povo brasileiro, que finalmente se liberta de um governo tirano e voa livre pelo céu. a última fala da novela foi uma voz em off que dizia:
“e zelão voou, e quem não acredita, é um homem sem fé”
milton gonçalves voou na tv e nos deu asas na vida real ao mostrar a gerações de cidadãos negros do brasil que sim, há que lutar mais e sempre por justiça e igualdade, mas é possível sonhar. não à toa, um dos últimos papéis de milton na tv foi num especial de natal, na pele do próprio papai noel.
TOP 10
10 divas negras cantando contra o racismo
billie holliday, strange fruit
nina simone, mississipi goddam!
clementina de jesus, rainha negra
ivone lara, sorriso negro
miriam makeba, africa is where my heart lies
sandra de sá, olhos coloridos
elza soares, a carne
mariene de castro, a força que vem da raíz
mc soffia, menina pretinha
beyoncé, formation
hey, chegou até aqui? pois se gostou ao ponto de ler até o fim, que tal apoiar essa publicação autoral, independente, sem recurso e sem assinaturas? eu ainda não tenho pix, mas você chamar na dm que a gente dá um jeito. qualquer quantia é bem-vinda, é só pensar quanto você investiria numa assinatura de um conteúdo que você curte. outra forma bacana de ajudar é compartilhar com quem você acha que gostaria de ler meu conteúdo. desde já muito obrigado!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book pela amazon.