envelheço na cidade
#85: flores, comida peruana, memórias da ditadura, alfajores secretos e meu amor por um povo kamikase para votar, mas que sabe encantar a gente
olá vocês!
a primavera não começou oficialmente no dia 21 de setembro, como em todos os anos. isso porque só se considera oficialmente a mudança de estação quando chegue o equinócio, que é quando o sol está sobre a linha do equador e faz com que o dia e a noite tenham a mesma duração. neste ano, o equinócio foi no sábado, 23. o que não impediu que na argentina se comemorasse “el día de la primavera” no dia 21 mesmo, já que é uma tradição por aqui.
o dia da primavera coincide com o dia dos estudantes, logo não há aulas e há a bonita tradição das pessoas se presentearem com flores. buenos aires é conhecida pelos cafés e pelas livrarias, mas para mim o que faz a cidade especial é a grande quantidade de banquinhas de flores pelas ruas. para uma cidade que ama as flores o ano inteiro, logo faz sentido que o dia em que chega a estação delas seja tão especial. é bonito caminhar pelas ruas e vendo as pessoas levando pequenos buquês. ainda faz frio, mas a cidade sabe encantar.
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na semana passada foi meu aniversário, num dia de semana e como ganhei o dia livre, saí para almoçar com victor, meu marido e nosso sobrinho. andrés fabián é um rapaz calado, que chegou a pouco da colômbia, onde viveu a vida toda em um povoado, perto de bogotá. eu gosto muito de assistir ele conhecendo a cidade, se espantar com coisas que para muitos é banal, achar bonitas e estranhas as coisas. é bonito ver alguém se encantar pelo que já nos tem encantado.
aliás, coisa boa é poder andar pela cidade em dia de semana. não sei, parece que é outra onda, as ruas, restaurantes, tudo parece diferente. fim de semana todo parque, espaço público museu, shopping fica lotado. que é uma característica da cidade, as pessoas vão aos lugares. o governo da cidade organiza festivais, mostras, feiras e as pessoas vão em peso. mas meio da semana eu sinto a cidade mais minha. pena que não aconteça muito porque eu trabalho em casa o dia todo.
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fomos ao la conga, famoso restaurante peruano conhecido por ser muito cheio, muito caótico, mas com a comida mais saborosa que existe, em poções ridiculamente grandes. pedimos um ají de gallina, um ensopado de frango com batatas; um picante de mariscos, que é meio que uma feijoada de frutos do mar; e meu prato peruano favorito que é ceviche. dividimos o três pratos e uma jarra enorme de suco de guanábana, cujo gosto me pareceu familiar e só depois eu descobri que é graviola. nunca comi nada tão bom na minha vida.
os turistas brasileiros já chegam aqui com um roteiro gastronômico na cabeça: jantar no don julio e lanchar no café tortoni. com todo respeito, o la conga, na zona do once dá de mil. o once é uma zona de comércio popular, cheia de imigrantes e pessoas mais pobres, logo, um lugar super mal visto pela classe média alta. dizem que é violento, mas nada diferente do centro urbano de qualquer metrópole latinoamericana. só fala mal quem não conhece ou não precisa viver ali.
o la conga sempre tem uma fila enorme na porta e as pessoas entram não só pela ordem de chegada, mas pelo numero de lugares que acabou de vagar dentro do restaurante. assim que é comum ver o senhorzinho que organiza a fila gritando números: se ele grita 4 é porque podem entrar um grupo de quatro pessoas. se grita “una pareja, una pareja, una pareja!” é porque busca um casal de pessoas. mas se forem amigos? ou ficantes? será que as pessoas se pedem em namoro só pra entrar no la conga? imagino casais contando pros filhos que começaram a namorar só pra poder comer o picante de mariscos. pensando bem vale a pena.
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aproveitamos que estava ali na região e passamos nas lojas de tecido pra comprar o que faltava pra roupa do casamento. sim, nós vamos celebrar nosso amor em novembro e o victor vai costurar nossas roupas. eu nunca pensei que organizar uma festa de casamento consumisse tanto tempo, dinheiro e energia, mas há coisas muito boas no meio, como poder pensar numa roupa linda, imaginar os pormenores da cerimônia, ver as pessoas empolgadas querendo participar. como eu estou longe da minha família, vai ser um dia lindo com nossos melhores amigos e o amor da minha vida. melhor presente impossível.
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há um mês e meio finalmente voltei ao trabalho presencial. estava trabalhando remoto desde 2020 e agora, dois dias por semana eu saio cedinho pra ir ao polo tecnológico onde está o prédio onde eu trabalho. 20 minutos de bicicleta. 30 minutos caminhando. 15 minutos de metrô (r$ 0,60 a passagem, juro). com um parque enorme no caminho, o parque patrícios. a princípio eu odiei a novidade. mas tenho que reconhecer que tem me feito bem e que eu tenho o privilégio de morar perto do trabalho. faz parte da minha personalidade odiar mudanças e depois adorar.
parque patrícios é o nome do parque e também do bairro. fica ao lado do bairro onde eu moro, boedo, na zona sul da cidade. são o que chamam aqui de “barrio barrio” ou seja, é um lugar residencial, fora do eixo turístico. é uma zona comum, com mais casas que prédios, embora aos poucos a paisagem sofra mudanças. edifícios como o polo tecnológico, que trouxe para a zona as multinacionais de tecnologia, como a minha firma. é bom pra economia local ter mais gente circulando, mas a longo prazo isso faz os preços dos alugueis dispararem e as pessoas mais pobres irem cada vez mais para os conurbanos. será parque patrícios o próximo palermo?
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no sábado fomos ver o espetáculo de uma amiga no centro cultural da esma. era uma ópera queer moderna contando a história dos povos originários andinos e o contato sangrento que eles tiveram com os colonizadores europeus. não entendi, mas gostei muito. enquanto esperava a sessão começar, vi que ao lado tinha um homem e uma mulher conversando em português, apesar de serem claramente gringos, a notar pelo sotaque. curioso que sou, tive que ir falar com eles. o homem era turco e a mulher holandesa. se conheceram em são paulo e o português era o único idioma que eles tinham em comum. buenos aires sabe surpreender.
a esma é uma antiga escola de soldados que durante os sete anos da ditadura argentina foi o maior centro de tortura do exército. na argentina 30 mil pessoas foram mortas ou desaparecidas pelo terrorismo de estado. hoje esses porões onde toda espécie de horror era cometida por sádicos homens de bem é um museu. eu já fiz uma visita guiada há uns anos e é perturbador, eu saí de lá nauseado. o local tem uma energia pesadíssima, mas é necessário não deixar morrer esse passado, sob pena de ser assombrado pela volta dele outras vezes.
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eu falei ali que os brasileiros chegam aqui com um roteiro pronto de coisas pra conhecer e quase não se arriscam a sair do pré-estabelecido. eu acho triste porque a cidade tem muito mais a oferecer. livrarias mais interessantes que a atheneo, comidas mais gostosas que a parrillada, alfajores muito melhores que o havanna. mas cada um com seu cada qual, né. tem coisa mais clichê que foto na flor de metal? não tem. mas também não dá pra conhecer tudo em uma semana e é mais prático ir onde todo mundo vai.
por outro lado, melhor assim. já pensou se descobrem o la conga? já tem uma fila grande todo dia, imagina se vira moda e todo mundo que vem a buenos aires resolve ir. ou o pior dos meus pesadelos, se os turistas descobrem o capitán del espacio. eu rezo todo dia pra que isso nunca aconteça. capitán del espacio é uma marca de alfajor que existe há décadas e é um fenômeno raro em buenos aires: todo mundo conhece, mas quase não se encontra.
isso ocorre devido ao fato de que o doce é produzido em quilmes, uma cidade vizinha a buenos aires, e sua distribuição se limita apenas a uma parte do conurbano sul da capital. em outras palavras, encontrar um deles à venda no centro da capital é tão raro quanto encontrar uma nota de 100 dólares na rua - é um verdadeiro milagre. criado na década de 60, o alfajor passou por poucas mudanças em sua receita e embalagem ao longo dos anos. gerações inteiras o têm como seu favorito, e com razão, afinal, é simplesmente o melhor alfajor que existe.
a massa é incrivelmente saborosa, com uma textura fofa, masa sem ser farinhenta. o doce de leite do recheio é doce na medida certa e tem duas opções de cobertura: a de chocolate realmente tem gosto de chocolate e a de merengue branco é divina - não há outra palavra para descrever. às vezes, penso que devo ter feito algo muito certo em outra vida, porque a graça divina me alcançou, me abençoando com a maravilha de viver em um bairro onde os kioskos (as vendinhas de doces daqui) oferecem o tão cobiçado capitán del espacio.
mas temo o dia que vire moda, venda muito, tenham que expandir o negócio. ou pior, seja vendido para alguma multinacional da vida e isso altere o sabor. já aconteceu com a cerveja quilmes e os sorvetes da freddo. por isso quando me pedem uma indicação de alfajor eu respondo “cachafaz” na maior cara dura. acho lindo que se encantem pelo que já me tem encantado, mas tudo tem limite.
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no dia 22 de outubro ocorrem as eleições argentinas. e a gente mais ou menos sabe o resultado. porque ou ganha a ultra liberal, conservadora, demagoga e anti-direitos humanos patricia bulrich, ou ganha o favorito, um sujeito que é tudo isso, só que completamente insano e com um cabelo que faria o guga chacra parecer a gisele bündchen. o tal do milei. só um milagre faria o terceiro nome, o peronista sergio massa, ganhar.
é foda difícil porque, ao que parece, não adianta muito avisar que o brasil passou por um pesadelo parecido há pouco e foi o pior que já aconteceu conosco. politicamente as pessoas aqui são meio kamikase. por exemplo, no brasil, jair bolsonaro é disparado a pior coisa que já ocupou o poder. já aqui, houve uma sucessão tão grande de maus presidentes — de bem intencionados, porém ineptos a escroques e corruptos — que em perspectiva, muitos crêem que milei não vai ser tãããão ruim assim.
tenho visto no brasil matérias tentando entender a ascensão da extrema direita no brasil comparando o dito cujo daqui com o bolsonaro. só que existe uma infinidade de diferença entre os dois países e os sujeitos em questão. primeiro que bolsonaro tem a complexidade de pensamento de um protozoário e o milei parece ter mais que cinco neurônios, o que é um perigo maior.
segundo, a argentina não possui, ainda bem, componentes que formaram a base bolsonarista no brasil: o militarismo aqui é envergonhado pela memória viva da ditadura; o pentecostalismo ainda não é politicamente expressivo; e o agronegócio não é grande o bastante para eleger um presidente. milei se elege mais pela desesperança das pessoas frente a uma inflação de 82% que de fato um apoio declarado a suas ideias torpes. menos mal.
há alguma insegurança no cenário futuro, mas vejo na maioria das pessoas uma certa resiliência diante do que parece inevitável. em 2001 o país atravessou a pior crise da história e chegou a ter em poucas semanas, cinco presidentes. dois anos depois a argentina se reerguia rumo a um período de grande avanço econômico e social. aqui é assim, cabe à gente aprender a entrar na dança.
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“que hacés acá si todos nosotros queremos vivir en brasil?” é o que eu costumo ouvir toda vez que meu sotaque denuncia de onde eu venho, apesar de já estar aqui há seis anos. em seguida ouço um rosário de lembranças envolvendo praias em búzios ou florianópolis, alguma menção à caipirinha, à música brasileira, á beleza das pessoas e à nossa comida. os argentinos amam o brasil. mas tinham que importar justo o bolsonarismo?
links, links, links!
que feio a mania de mandar indireta nas redes, né? eu não faço isso, ao contrário de certas pessoas…
cinco novos cursos imperdíveis do instituto universal brasileiro.
um mergulho no bizarro mundo das “trad wives” brasileiras.
venho pensado muito no rolê das newsletters, agora que o substack está furando a bolha e tem muito texto sobre escrever e muita newsletter sobre fazer newsletter. a taize odelli leu meus pensamentos e escreveu, melhor do que eu faria, um texto sobre o tema.
TOP 10
10 bons álbuns-tributo
tenho ouvido muito o álbum xande canta caetano, com versões boas em samba feitas por xande de pilares para canções de caetano veloso. é raro um álbum de tributo fazer justiça à obra retratada, quase sempre é um troço pastoso tipo o silva canta marisa. abaixo, deixo uma lista dos meus álbuns de covers preferidos.
as canções que você fez pra mim - maria betânia cantando roberto carlos e erasmo carlos
baez sings dylan - joan baez cantando bob dylan
gal canta caymmi - gal costa cantando dorival caymmi
onde brilhem os olhos seus - fernanda takai canta músicas do repertório de nara leão
in my life - celine dion, phil collins, bobby mcferrin,robin williams, sean connery, goldie hawn e jim carrey cantando beatles
vou tirar você desse lugar - paulo miklos, pato fu, zeca baleiro, mombojó, picassos falsos, shakemakers cantando odair josé
homenaje a violeta parra - mercedes sosa cantando violeta parra
kaya n’ gan daya - gilberto gil canta bob marley
até pensei que fosse minha - antónio zambujo canta chico buarque
xande canta caetano
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Que delicia de caminhada, Junior! ♡ vontade de passear por bsas! Parabéns pelo seu aniversário e pelo casório ♡♡♡
Que edição mais linda no modo salada mista 😅❤️ Feliz novo ciclo Junior! Que o casório seja tudo de bom e que nessas caóticas eleições, o menos pior ocorra!