de alma lavada
#189: a alma pedia um sabão forte, e eu a esfreguei com soda e anil, bati na pedra, botei pra quarar, até que tudo enfim começasse a clarear de novo.
olá vocês
ultimamente eu dei para sair na rua com a alma de fora. exibida, ela não aguenta mais em si, quer ver e ser vista. e eu vi a de muita gente. o povo perdeu o pudor, agora mesmo passei por uma turba num bar. todo mundo feliz com a alma à mostra, botando o bloco na rua.
mas também pudera, a gente lavou a alma, não? e tava na hora, a pobre já estava surrada, embolorada, engodurada, opaca. ninguém nem lembrava mais que cor a alma tinha.
acho que a gente esqueceu que a alma também precisa de banho. e não desses ligeiros, apressados, que mal tiram o pó da superfície. a minha mesmo precisou de um ritual inteiro, um processo lento, quase artesanal. levou tempo, paciência, braço e fé. juntei o que tinha a mão aqui: alfazema para abrir caminho, benjoim para varrer a sombra, pétalas de rosas para lembrar que ainda existe delicadeza no mundo.
pedi pra vizinha um galho de alecrim, umas folhas de manjerição, e já que tava por ali, catei um ramo de arruda. coloquei tudo numa bacia funda, despejei água quente e esperei o perfume levantar, subir, se instalar no ar, como quem toma assento para assistir ao início de um acontecimento. e tome esfregar com sal grosso.
mergulhei as mãos primeiro, só para sentir o peso do que vinha. e que peso. esfreguei devagar, como se a alma tivesse dobras, vincos, aqueles cantinhos chatinhos de alcançar. passei as ervas por dentro dela, revirando, retirando fiapos de dor que tinham se agarrado ali. e deixei de molho ali até ela sair meio enrugadinha.
mas não bastava.
a alma pedia um sabão mais forte, capaz de tirar a sujeira entranhada. preparei um sabão de soda com amaciante, cheiroso e firme. enxáguei na água com anil, daquele que deixa tudo mais azul que o céu da infância. comecei a ensaboar cantarolando baixinho, para dar cadência: “amanhã vai ser outro dia…”.
esfreguei com autoridade, com carinho, com raiva, com esperança. a alma não reclamou. parecia até grata por alguém finalmente colocar as mãos nela. e ali, no vai e vem do gesto, percebi que não era só a minha que pedia esse cuidado.
lavei também a alma das famílias que perderam seus amores sob o abandono do estado. das mulheres silenciadas que engoliram palavras pesadas demais. das travestis violentadas por mãos e bocas brutais. de gays, lésbicas, crianças, indígenas, quilombolas. todas essas dores grudadas na nossa pele coletiva.
a alma já estava um pouco mais leve, mais clara, mas ainda fedia a boi e a bala. eu já estava exausto, mas não esmorreci.
lavei a alma de todos que perderam o riso luminoso de paulo gustavo e a poesia de aldir blanc. de todos que viram a morte rondar suas portas enquanto a crueldade gargalhava em mesas bem-postas, negociando esquemas imundos, escarnecendo da cara da gente.
quando acabei, percebi que era preciso bater a alma. não por castigo, mas para soltar o excesso de dor que não saía só com água. levei-a para a beira do rio, apoiei sobre a pedra lisa e bati uma, duas, dez vezes. até que o eco da violência se descolasse dela como uma casca velha.
depois deixei quarar, no sol da tarde inteira, a alma que precisava de luz e calor, depois de tanta treva. por fim, soltei na correnteza. deixei que o rio carregasse, girasse, conduzisse ao mar. ali, nas mãos salgadas de yemanjá, a alma encontrou repouso. voltou outra, cheirando a futuro.
foi só então, ao recolhê-la de volta, que percebi o tamanho da sujeira que tínhamos carregado. uma crosta imunda, uma gordura moral que a gente tentava disfarçar com perfume, um tártaro no riso que nos tirou o fôlego enquanto zombavam da nossa dor, da nossa falta de ar.
uma fumaça tóxica das motociatas que nos atropelavam como insulto. da lama podre das rachadinhas, das mentiras fétidas dos grupos de zap. do lodo em que se meteram tios e tias, engambelados por teorias absurdas. o mofo azedo de uma gente sem alma.
pendurei no varal, enfim arejada, respirando por conta própria. naquele instante, o brasil também parecia recuperar isso que, com tanta cautela, ainda chamamos de esperança: uma alma lavada que, pela primeira vez em anos, volta a caber inteira dentro do próprio corpo.
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júnior bueno é jornalista e escritor. agora empregado (ufa!), mas ainda aceitando freelas e carinho em forma de compra de livro na amazon: a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa.


Que bela poesia em prosa! P/ lavar a alma! Adorei, mesmo!
De alma leve!