da nuca até o cóccix
#68 - como uma canção do chico césar virou uma tatuagem ruim na argentina e outras histórias
olá tudo bem?
se tem uma editoria da cultura pop que me dá uma preguiça danada é o tal de explicar o sentido de tudo. desde o grupo de chatos nos comentários da laerte todo dia dizendo que não entendeu uma tirinha, até os inúmeros tiktoks revelando história por trás de canções, baseados em fatos que eles tiraram de algum lugar mais ao sul do equador. arte não é lógica e não tem que ser. arte é subjetivo. não tem que ser explicada, decifrada, decodificada, carimbada, avaliada, rotulada.
e pior que tem casos que a garela vai longe na explicação e inventa toda uma teoria para explicar uns versos. o djavan até hoje tem que desmentir que a música flor-de-lis foi feita após perder uma filha recém nascida. e tem gente jurando que a adriana calcanhotto tem um irmão cego, por causa do verso “eu presto muita atenção no que meu irmão ouve”, de esquadros. tá bom, querido agora me explica toda a história por trás de jackie tequila, então. vai lá, faz uma teoria aí pra “seu pai cruzou o mar, duas filhas na canoa, coco pra beber e leite de leoa”.
arte tem que ser sentida e interpretada. combinando o que um quer dizer com o que o outro absorveu daquilo. é bem bonito, uma obra coletiva. o caminho é bonito. sai de um sentimento, como um fiozinho de água e vai ganhando corpo conforme avança. ganha palavras, no caso de um texto, e acordes, no caso de uma canção. e depois passa pela voz, e vai ganhando mais corpo, outras pessoas surgem pra participar do processo, referências de outras obras, outros autores e quando chega nos olhos/ouvidos de uma multidão, é como chegar ao mar. grande, ruidoso, indivisível.
bom, agora pra desdizer aquilo tudo que eu já disse antes, eu vou falar sobre duas canções cuja letra eu amo e que há tempos eu queria escrever algo sobre elas. mas calma que não vou tecer teorias. é que entender o contexto ou ler nas entrelinhas ajuda muito, mas tudo baseado no que os autores mesmos já falaram sobre elas.
a primeira é vambora, de adriana calcanhotto. é uma das minhas músicas preferidas da vida (eu tenho umas 659 músicas preferidas). esta canção nasceu, segundo adriana, da vontade de colocar em versos o nome de dois livros de poesia que ela achou por acaso na estante: dentro da noite veloz, o primeiro livro de poesia de ferreira gullar e a cinza das horas, de manuel bandeira.
é uma canção sobre a ansiedade da espera de alguém tão amado que provoca a capacidade de sentir seu perfume pela casa, até quando abre um livro ao azar. tudo isso “somente” para encaixar dois livros com o título bonito. não há como negar que ela tava inspirada. vambora faz parte do álbum marítimo, de 1998. neste disco, adriana evoca muito o movimento modernista brasileiro. na capa ela usa um parangolé, vestido-instalação de helio oiticica, que ganha uma música em sua homenagem, parangolé pamplona. e também canta vamos comer caetano, mais antropofágico impossível.
mas é em vambora que o modernismo corre solto. por acaso (ou não), os dois poetas que ela escolheu para homenagear são expoentes de fases distintas do modernismo, já que as obras têm quase 60 anos de diferença. bandeira é da primeira turma do modernismo e gullar é considerado um poeta pós-modernista. e pra começar a canção, de acordes simples, ela interpreta os versos de um modo que para mim parece muito concretista. se você visualizar as frases, parece que elas foram escritas assim:
“entre por esta porta
agora
e diga que me'a
dora
você tem mei
a'hora
pra mudar a minha vida”
é de um compromisso com um estilo muito grande e bonito, embora não se possa afirmar 100% com certeza que era o que ela pretendia com cada palavra. talvez nem lhe ocorreu e ela só viu depois. vai saber. depois que eu vi get back, o documentário dos beatles, e descobri que eles encaixavam palavras ao azar para caber nas melodias, eu não aposto em mais nada do que o autor quis dizer. ás vezes é só porque tinha que caber no verso. e tá tudo bem.
e muitas vezes a gente atribui um significado a algum trecho, considera aquilo muito especial e daí o autor, depois de décadas diz que não é nada daquilo. tipo o chico césar em à primeira vista, a segunda música deste texto. a música explodiu na voz de daniela mercury, na trilha da novela o rei do gado. a versão com o chico césar é muito famosa (e muito boa) também. pois bem, breve historinha.
o músico argentino pedro aznar, fã de música brasileira, lançou um álbum com versões em espanhol de algumas de suas canções preferidas, entre elas, à primeira vista. e uma celebridade argentina, cinthia fernandez, ficou fã da música. mas sem entender o que queria dizer os versos “amarazaia zoiê, zaia zaia, ahinga dunmã”, fez o que qualquer celebridade faria: perguntou no twitter. e as pessoas responderam como qualquer tuiteiro faria, em qualquer lugar do mundo: zoando. convenceram a mulher que queria dizer algo profundo em algum idioma obscuro.
pois bem, e não é que a cínthia foi lá e tatuou “no existe nada demasiado alto para quien consegue volar amarazaia zoe zaia zaia” da nuca até o cóccix. eu amo esta história porque mistura música, celebridades meio tontas e tatuagens cagadas. porque segundo chico césar, este verso não quer dizer “absolutamente nada”, nothing, niente, necas de pitibiriba.
à primeira vista é o tipo de música que me faz agradecer todo dia a deus por ser brasileiro, porque o nosso idioma é lindo e a nossa música é inegavelmente a melhor. fala se não dá vontade de se apaixonar. ativando meu arquétipo professor pasquale aqui, tenho que dizer que a música é toda trabalhada na anáfora, que é a repetição dos mesmos termos na estrutura das frases, criando um ritmo por esta repetição.
“quando não tinha nada, eu quis
quando tudo era ausência, esperei
quando tive frio, tremi
quando tive coragem, liguei”
cada frase é uma condicional ( “quando aconteceu aquilo, eu isto”), com a ordem inversa e no final, a música coroa com um “quando vi você, me apaixonei”. até o refrão sem nenhum sentido aparente é bonito na música. outra parte que chama a atenção é uma mudança que ele faz quando repete a segunda estrofe. na primeira ele cita o cantor prince e na segunda, salif keita. o primeiro todo mundo sabe quem é, o gênio dono de canções eternas como kiss, purple rain e tantas outras.
já salif keita é um cantor do mali, radicado em londres. é um dos grandes expoentes da música negra africana, apesar da pele albina. e é uma pena ele ser tão desconhecido no brasil, não mais que um nome em uma canção. segundo chico cesar em entrevista, a escolha de salif, como a de prince foram uma decisão política: “estou me referindo a dois artistas negros: um no centro do mundo pop anglófono, outro representando os afrodescendentes que vivem na europa. é geopolítica e pan-africanismo cantados de uma forma doce.”
pra quem andou puto pelo cunho de suas canções dos últimos anos, é sempre bom lembrar que chico césar sempre foi político em suas canções. e em sua vida. em entrevista para o globo, ele diz que o irmão foi preso pela ditadura quando o cantor tinha apenas cinco anos e isso o marcou profundamente. ser um artista negro no brasil e não ser político me parece algo quase impossível. mas como ele mesmo define, “minha política normalmente é doce. eu sou amoroso.” não à toa, seus dois últimos trabalhos se intitulam o amor é um ato revolucionário (2019) e vestido de amor (2022). este último com uma participação em uma das faixas de quem? ele mesmo, salif keita.
TOP 10
10 compositores contando a história de suas canções
o de hoje é bem simples, vou deixar aqui sugeridos alguns vídeos de artistas da música falando sobre suas composições. é uma maneira linda de se conectar com a música, a partir da história da criação daquelas que depois vieram a ser trilha sonora de nossas vidas.
links, links, links!
três textos que li esta semana e recomendo muito.
e dois podcasts que devorei nesta semana que meio que contam histórias parecidas. o brasil para maiores, sobre a acensão e queda do pornô feito com (e por) celebridades no brasil nos anos 2000. e bunga bunga, que narra o frenético e absurdo circo que foram os governos de silvio berlusconi, ex-primeiro ministro italiano, dividido entre a baixaria e as orgias.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.
Eu morro de rir com o Djavan desmentindo a "história" de Flor de Lis e com o Chico César falando que o refrão não quer dizer nada, mas não sabia da história da tatuagem! E nem sobre a composição de Vambora, apesar de reconhecer os nomes dos livros (e tenho vontade de ler os dois só por causa dessa música). Adorei a edição!
Acho que toda teoria é uma interpretação. Só que o problema dessa interpretação gira em torno do autor, como se essa leitura fosse a correta: "o que o autor quis dizer, logo, o que a gente deve ouvir". E não uma interpretação sobre o texto, a música ou a tela. Algo múltiplo, democrático no tempo e no espaço.
Ótimo ponto e ótimo texto, parabéns.