cores de almodóvar
penélope cruz, tortilla de batata, gaspacho com calmantes, freiras lésbicas viciadas em heroína, travestis, elis regina e cecilia roth: cabe tudo no universo do meu diretor favorito
hola, muchaches!
uma historinha: há uns 4 anos eu, namorava um americano que vivia em uma pensão perto de uma ruazinha muito linda. era o que chamam de “pasaje”, não é aberta aos carros, tem uns predinhos fofos, uns cafés fofos, e um pequeno teatro mais fofo ainda. o tipo de coisa que só quem anda a pé descobre.
pois bem, estava eu andando por aí, quando me deu curiosidade de entrar no teatro e xeretar o que estava em cartaz, vai que. só que o saguão tava muito movimentado, parecia uma pré-estreia de alguma peça. não só parecia como realmente era. um povo muito bem vestido, por sorte, eu tinha saído de casa de manhã pra uma entrevista de emprego. quando eu olho por cima do ombro vejo uma das minhas atrizes favoritas da vida, cecília roth, de tudo sobre minha mãe.
lógico que eu fiquei sem ação, meu espanhol fugiu da boca e eu tava perto demais dela pra poder sair correndo sem ser notado. ela me olhou e por uma eternidade, trocou um olhar. e sorriu. cara a atriz mais foda da argentina sorriu pra mim (capaz que é normal demais ela ver gente com cara de bobo olhando pra ela.) criei coragem, pedi licença, falei que amava tudo que ela fez. ela foi tão fofa quanto a rua, o teatro, os cafés, etc. não só me deu um abraço quanto perguntou se eu queria tirar foto e disse pra ir ver a peça dela.
(muito boa a peça inclusive, no paseo la plaza. quem vier aqui, tem que ir no teatro e no museu dos beatles que também fica no paseo e eu já falei dele aqui.)
não sei se todas as estrelas argentinas são assim de simpáticas, só sei que por alguns segundos estive perto de uma mulher que, além de ser uma das maiores atrizes da américa latina, também 1 - teve um romance frenético com fito paez que gerou canções como un vestido y un amor; 2 - esteve em nada menos que oito filmes do meu diretor preferido, pedro almodóvar. e estar a dois graus de separação deste homem é algo que eu jamais imaginei em minha vida comum e corrente.
almodóvar é o tema desta newsletter que chega á sua caixinha de e-mail, e falarei um pouco sobre o que tenho observado reassistindo alguns de seus filmes que agora estão nas plataformas de streaming. (zero saudade de esperar cinco fucking anos pra ver um filme em vhs). além disso, cinco - ou seis - links sobre o tema e duas receitas saídas direto das telas. ven conmigo!
HOMENAGEM
para pedro, com amor
há uma cena em dor e glória, de 2019 em que pedro almodóvar recria uma passagem de sua própria vida. quando o diretor era criança, sua mãe colocava pedaços de chocolate no pão, para que pudessem enganar a fome. no pós guerra, alguns alimentos eram escassos. o chocolate, por exemplo era a alternativa barata à manteiga. em cada tablete, vinha de brinde uma figurinha de alguma estrela da era de ouro de hollywood, em fotos preto e branco colorizadas com cores primárias. ali, entre mulheres de beleza etérea e homens com porte de galã, o jovem descobriu um amor que mudaria para sempre a sua vida: o cinema.
“detrás daqueles cromos existia un mundo maravilhoso que para mim era quase mais real que o outro, o que me tocava viver no dia-a-dia.” pedro almodóvar em entrevista.
nascido na província de la mancha, na espanha, pedro teve sua infância regida por dois grandes eixos: a igreja e o cinema. a rigidez da escola católica durante a semana era amenizada pelas matinês de domingo. esses dois mundos, com todas as suas contradições foram combinados de forma fantástica ao longo de 23 filmes e uma dezena de curta-metragens.
pedro se mudou para madri no fim dos anos 60, aos 18 anos. devido à instabilidade financeira, ele não pôde frequentar a faculdade e trabalhou em lojas e empresas de telefonia. paralelamente começou a habitar a cidade, escrever, rodear-se de artistas. nesta época fervilhava o teatro independente, a contracultura e a música underground. são desta época suas primeiras produções em super-8, filmes curtos como follame, follame, follame tim e salomé.
sua estréia nas salas de cinema comercial se deu somente em 1980 com pepi, lucy, bom y otras chicas de montón. o filme faz parte da primeira fase do cineasta, mais experimental, punk e provocadora do cineasta. neste, por exemplo, uma das personagens é uma dona de casa masoquista que sente prazer em apanhar do marido. em maus hábitos (1983) há uma madre superiora lésbica e viciada em heroína.
para quem, como eu, começou a ver os filmes do diretor a partir de tudo sobre minha mãe (1999), ter contato com esses primeiros filmes é um tanto chocante. perto de maus hábitos, a pele que habito (2012) é uma fábula da disney. mas um ponto a se notar na fase mais jovem do diretor é que ele não julga suas personagens, mas conta suas histórias com uma franqueza crua, com todas as contradições. não existe ali o bem e o mal, apenas o humano.
mas é bom que se note que, a despeito de suas temáticas nem sempre digeríveis, pedro foi polindo sua perspectiva à medida em que os anos foram passando. por exemplo, a forma em que a trama de luci, a dona de casa citada anteriormente é mostrada, chegando a quase morrer apenas pelo prazer de apanhar. ou em kika (1993), em que a empregada feita por rossy de palma conta com naturalidade como o irmão se “alivia” com ela para evitar que estupre outras mulheres. pesado e, aos olhos de hoje, indefensável.
no entanto, ao voltar ao tema de estupro e violência doméstica em volver (2006), a abordagem é dramática e madura. é possível notar, que mesmo em um artista que já era vanguardista em abordar temas espinhosos, a desconstrução foi atravessando seu trabalho e o tornou melhor e mais profundo por isto. é importante ressaltar isto porque existe um conflito entre moral e arte que ora flerta com a censura, ora descamba para a violação de direitos humanos.
a meu ver, não há nenhum tema que não deva ser abordado e nenhuma história que não deva ser contada. para a arte não há tema tabú, desde que se afie o ponto de vista de quem narra. problemas sociais não desaparecem se deixamos de contar e retratá-los. a solução não é parar de falar sobre temas que machucam, mas falar sobre eles da melhor maneira.
outra razão para que pedro seja, para mim, um dos maiores artistas contemporâneos é que ele sempre trouxe para o centro da narrativa a história de mulheres e lgbtqia+. é interessante ver um diretor se enamorar da figura feminina a ponto de escrever sobre várias, de várias idades, distintos extratos sociais e diferentes dramas pessoais. e saindo de todos os estereótipos impostos por hollywood, em que aos 40, uma mulher deixa de ser personagem principal.
mesmo os filmes estrelados por homens, são sobre personagens atravessados por alguma feminilidade ou sob a influência de uma forte mulher. suas mulheres não são revitimizadas. a despeito de contextos hostis, ele as constrói fortes e atrevidas. em o que eu fiz para merecer isto? (1984), a onipresente carmen maura é uma dona de casa cansada que desperta para o desejo e o prazer extraconjugal. não é uma amélia, mas uma mulher bem resolvida que inclusive é uma mãe ruim.
o fato de suas mulheres serem contraditórias e com fogo nas entranhas é um dos grandes atrativos na obra do diretor. apesar de amores trágicos como parte de suas histórias, as mulheres são sempre guiadas por um desejo que rompe a norma e as leva a um profundo conhecimento de si mesmas.
por outro lado, desde os anos 80, pedro vem contando histórias sobre mulheres trans. como em a lei do desejo (1987). conhecemos também a adorável agrado (antonia san juan) de tudo sobre minha mãe; destaco as participações glamourosas da atriz vivi anderson em de salto alto (1991) e kika. todas elas tratadas como as mulheres incríveis que são.
além disso, numa época em que o cinema mainstream só mostrava afetos gays como tragédia ou deboche, vemos homens que amam outros homens de maneira natural em filmes como dor e glória, a lei do desejo e os amantes passageiros (2014), entre outros. meu filme preferido do diretor, a má educação (2004) é uma linda história de amor recheada de lirismo. foi neste filme que vi que um beijo entre dois homens também podia ser um ideal romântico.
óbvio que nem tudo são flores no reino colorido do diretor. apesar de ter um elenco mais diverso que a média entre seus pares, pedro ainda tem deve um tanto em termos de raça, por exemplo. não há gente preta na espanha? e apesar de estar anos luz à frente em temas, algumas de suas obras envelheceram mal. dizer que almodóvar é um diretor frívolo com filmes sobre mulheres histéricas gritando sob tons vibrantes é um reducionismo injusto. e apontar algumas falhas como desculpa para não conhecer melhor seus filmes é um desperdício.
mesmo quando cria filmes menores como abraços partidos (2011) e julieta (2016), ele ainda é melhor que quase tudo que é feito por aí. seu mais recente filme foi bastante aclamado, mas quando estreou no stream (não chegou aos cinemas por aqui), confesso que não achei tudo isso. eu esperava mais de mães paralelas? acho que sim. mas o pedro vai ter que se esforçar mais pra me perder.
RECEITAS
filmes para o estômago
não sei vocês, mas eu amo filmes que tem algum prato especial ou alguma receita. quando vi noiva em fuga, tive que experimentar ovos benedict. e não sosseguei até achar uma créme brulée só pra quebrar a crostinha de açúcar, culpa de amélie poulain.
dia desses eu estava vendo madres paralelas (2021), o último filme do pedro almodóvar na netflix. e em determinado momento, a personagem da penelope cruz começa a fazer uma tortilla de batatas e meu deus do céu, parecia tão gostosa e bonita que eu e o vitor nos olhamos ao mesmo tempo e falamos “no te antoja una tortilla de papas ahora”? sim. pausamos o filme, corremos pro supermercado, faltando 5 minutos pra fechar e saímos de lá com um kilo de batata.
a receita é bem simples e eu deixo aqui abaixo e logo depois um gaspacho, já que estamos falando de almodóvar e essa receita é um dos símbolos de mulheres à beira de um ataque de nervos (1988).
tortilla de papas de mães paralelas
4 ovos
3 batatas médias
1/2 cebola cortada em meia-lua
sal e pimenta a gosto
óleo para fritar
corte as batatas em fatias finas. eles devem ser de tamanho médio, pois queremos que estejam bem unidos ao ovo. 2. coloque bastante óleo em uma frigideira. é importante saber que as batatas não devem ser fritas, mas cozidas em óleo. coloque a panela em fogo alto e, assim que o óleo estiver quente, mas não muito, adicione todas as batatas antes do óleo ferver. deixe cozinhar por 5 minutos. passados os 5 minutos, coloque as cebolas na panela com as batatas, mexendo delicadamente. adicione um pouco de sal e baixe o fogo ao mínimo tape a panela. mas sem que fique completamente fechada, deixando uma pequena abertura para que o vapor possa sair. deixe assim por 15-20 minutos, mexendo de vez em quando suavemente para não grudar. depois que as batatas estiverem cozidas (não devem ficar crocantes, apenas macias), você, deixando-as em uma peneira até que todo o óleo tenha baixado. Se quiser, pode guardar este óleo para usar um pouco ao cozinhar a tortilha.
bata 4 ovos em uma tigela com um pouco de sal por alguns minutos. adicione as batatas com cebola na tigela e bata bem novamente até que tudo esteja integrado e unido. acrescente um pouco de óleo em uma panela. quando o óleo estiver bem quente, adicione a mistura da tigela e mexa a panela, agitando por 30 segundos. Não tenha medo de mexer a panela, é necessário coagular os ovos para que a omelete espanhola fique perfeita. depois de 30 segundos baixe o fogo e, com uma espátula, vá corrigindo as bordas enquanto cozinha. cozinhe assim por 5 minutos. o tempo depende da forma como se gosta. eu não gosto muito cozido nem muito mole, mas sim intermédio, e para isso cozinho 5 minutos de cada lado.
então é hora de virar a tortilla. para isso coloque um prato em cima da panela e virar sem medo. depois de virar, apare as bordas novamente com a espátula e deixar cozinhar por mais 3-4 minutos. para tirá-lo vire novamente. ou seja, coloque o prato de volta em cima da panela como fizemos no ponto anterior e viramos com cuidado.
gaspacho de mulheres à beira de um ataque de nervos
1 kg de tomates
1/2 pepino
1/2 pimentão verde
1 dente de alho
miolo de 2 pães
1 colher de sopa de azeite
2 copos de água
1/2 copo de vinagre
Sal e pimenta
lave bem todos os ingredientes, descasque os tomates e o alho. corte-os em pedaços relativamente pequenos, para que caibam bem no liquidificador. o pepino pode ser descascados ou não. com o miolo do pães, coloque um pouco de água e desfaça com a mão, até formar uma espécie de pasta. coloque os legumes no liquidificador: tomate, pepino, pimentão verde, alho, pão dissolvido, vinagre e azeite. misture até ficar homogêneo. no meio, adicione sal e pimenta. sirva bem frio. se você gosta muito de azeite (como eu) pode adicionar um toque no final. só não pode encher o gaspacho de calmantes, como no filme.
links, links, links!
pra quem ama a estética kitsch do diretor, recomendo seguir o perfil @almodovar.interiores, que está sempre de olho em detalhes dos cenários. é como uma casa claudia dos personagens.
e se almodóvar tivesse aceitado dirigir o segredo de brokeback mountain? aqui ele conta porque não aceitou e diz o que teria feito.
esta playlist com algumas das canções tema de seus filmes. destaque para ne me quitte pas de maysa e por toda minha vida, com elis e tom.
e pra quem quiser saber, esta é minha cena preferida de toda a filmografia de almodóvar.
hey, chegou até aqui? pois se gostou ao ponto de ler até o fim, que tal apoiar essa publicação autoral, independente, sem recurso e sem assinaturas? eu ainda não tenho pix, mas você chamar na dm que a gente dá um jeito. qualquer quantia é bem-vinda, é só pensar quanto você investiria numa assinatura de um conteúdo que você curte. outra forma bacana de ajudar é compartilhar com quem você acha que gostaria de ler meu conteúdo. desde já muito obrigado!
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book pela amazon.
Bom dia, Júnior!
Concordo demais com a sua reflexão sobre não haver tabu na arte, acho que há histórias muito interessantes por aí esperando para serem contadas, só falta dar chance para pontos de vista diferentes. E me sinto na obrigação de recomendar Como Água para Chocolate, da mexicana Laura Esquivel, um dos meus livros favoritos da vida, cuja protagonista tem uma relação muito peculiar com a comida e todos os capítulos começam com uma receita, é muito gostoso de ler e eu adoro os toques de realismo mágico! Tem um filme dele muito bom também, achei uma adaptação bem legal :)
Do Almodóvar, só me lembro de ter visto "De Salto Alto" no Cine Odeon, no Rio (não me lembro se na saudosa Maratona, em que virávamos a madrugada de sexta pra sábado vendo filmes ou se numa Sessão Cineclube, algo do tipo), e "Tudo Sobre Minha Mãe", que vi com minha mãe do lado, rs - agora não me recordo se no cinema mesmo ou em DVD.
Gostei mais - e me lembro melhor - do segundo: Huma Rojo (imaginei na hora a Tereza Rachel no papel numa eventual adaptação brasileira), "me llaman... La Agrado" e um detalhe aqui e ali. :-)
Quanto ao gaspacho, a personagem arrivista da Eloísa Mafalda em "Brilhante" cita o prato numa cena do último capítulo, depois que fica rica e compra a mansão dos Newman, rsrs.