com sabor de fruta mordida
#128 - assim como a fruta que lhe empresta o nome, o álbum caju, da cantora liniker é doce, ácido, travoso e a cara do brasil
olá vocês!
se eu pudesse escolher uma fruta para representar o brasil, escolheria o caju sem nem pensar muito. e nem é só por sua beleza, sabor e aparência, mas por se tratar de um produto genuinamente nosso: o cajueiro é uma planta originária da região litorânea do brasil que se espalhou por várias regiões do país através das castanhas levadas pelos índios. e depois, claro, ganhou o mundo através dos portugueses, que levaram a fruta para a áfrica e ásia. e daí que não é um fruto de verdade? até esse estado de “fruta que foi sem nunca ter sido” eu acho a cara do nosso país.
mais que somente um alimento, o caju é uma coisa que nasceu em um dia que a criação estava de muito bom humor. só isso explica ele ter as cores do pôr do sol, oscilando entre o vermelho mais vivo, um amarelo despudorado ou uma entusiasmada cor alaranjada. bonito de ver e gostoso ao tato, não bastasse isso, ainda tem forma de coração. e não sou eu que estou dizendo: o nome científico é anacardium occidentalis e “anacardium” significa “forma de coração” em latim.
calma, que eu ainda nem falei do sabor. tanto o caju, como seu primo goiano, o cajuzinho do cerrado (que amor este nome), são ótimos para fazer suco, doces, compotas, cachaça, rapadura, caipirinha e até vinho. sua consistência fibrosa é uma boa opção no preparo de uma moqueca vegana que eu provei uma vez e é pra comer de joelhos. e nem falei da cajuína, refresco já louvado pelo manobrista do leblon em canção de mesmo nome.
se você ainda não está salivando por um caju, eu devo dizer que estou. vai pra base de uns três anos que não dou uma mordida num caju madurinho. aquela entrega ao fortuito, sem saber o sabor que vem primeiro, se o ácido, o doce ou o travoso que seca a boca. mas enquanto não vejo a hora de reencontrar o pseudofruto, posso me deliciar com o álbum da liniker chamado caju, lançado na semana passada e que também pode ser descrito como ácido, doce e travoso na boca.
o caju da liniker é doce para quem está vivendo uma estória romântica, mas pode ser ácido para quem está saindo de uma e travoso para quem está solteiro, mas querendo não estar. sabe quando você está naquela fase de saber exatamente o que quer e merece de uma relação e não vai cair em qualquer papo? é para quem está pronto para mergulhar totalmente em um grande amor, mesmo que ele ainda não tenha chegado.
em entrevista para o podcast histórias de conforto a cantora diz que o trabalho reflete o momento em que ela está vivendo e os sentimentos que florescem nela. “eu acho que eu nunca tinha sido apaixonada por mim mesma e tô experimentando isso agora. (…) claro tem música pros romances todos mas eu tô muito segura para falar do que eu quero do que eu sinto do que eu não quero mais de quais são os limites e quais são os novos começos e os novos desafios dentro de me dentro de me relacionar”, disse liniker.
então não é exatamente um disco para morrer de amor e chorar atrás da porta, mas de descobrir sentido e vias de crescimento em se apaixonar e se arriscar. é para quem está viva e está vivendo. e mais que refrões grudentos, é um conjunto de canções com grandes frases, das que te deixam pensando por horas. frases ideais para o status do msn, como na faixa titulo.
“quando eu alçar o voo mais bonito da minha vida quem me chamará de amor, de gostosa, de querida?” liniker em caju
na alegre e solar tudo a ministra do amor e da paixão te convida a se abrir para o novo:
“como num filme, o que é bom faz o final. um beijo sem ensaio, tipo amor pra recordar” liniker em tudo
e também mostra uma vontade de se aninhar em dias frios:
“pensei que mandar um poema daria o tom, talvez uma colcha, retalhar mais um sonho bom, ficar à vontade pra poder me esparramar e sorrir sem maldar ao teu lado”. liniker, annavitória e amaro freitas em ao teu lado
toda uma gama de sentimentos são evocados em diferentes canções. por exempo o romantismo em veludo marrom:
“enquanto você dorme, eu cheiro você pra guardar na memória o tom do meu veludo cor marrom”. liniker em veludo marrom
uma carência meio ébria, despudorada e pagodeira que nos autoriza a ligar sim pro boy de madrugada querendo um enrosco:
“a gente pega fogo, não existe mais roupa, seis horas da manhã e a gente ouvindo bokaloka. se eu tô ligando a cobrar é porque eu tô com febre”. liniker em febre
e em papo de edredom ela exala muito, mas muito tesão:
“beijo na boca, no mar, tão bom dançar ao som de djavan, vamos revirar os olhos de manhã”. liniker e melly em papo de edredom
e em popstar, talvez a mais chiclete do conjunto é um alívio ver que liniker agora canta sobre quase-namoros de uma maneira leve e identificavel:
“já esperava sua mensagem no meu whatsapp dizendo: não te namorar foi pura bobagem” liniker em popstar
o repertório inteiramente autoral conta ainda com participações de lulu santos e pabllo em deixa estar; da cantora de arrocha priscila senna em pote de ouro; o baianasystem dá o tom em negona dos olhos terríveis e o duo tropkilaz embala a deliciosa so special. o conjunto de 14 músicas funciona muito bem em sequência. é um álbum para quem tem tempo para a contemplação: mais de uma hora de duração, com três canções de mais de sete minutos na sequência e longos instrumentais ao final. claramente estamos diante de um álbum que não foi pensado para hitar no tiktok.
é um disco para quem gosta de disco e a prova de que dá para ser extremamente pop e ainda assim ter muita qualidade sonora e lírica. é notável que o trabalho levou tempo para ser pensado e executado por uma artista, não um fruto madurado à força e moldado somente pelo que a indústria acha que deve vender. não sejamos ingênuos, há muito trabalho de indústria para colocar 13 das músicas de caju no top 100 brasil do spotify, mas o fato de um trabalho autoral de uma travesti negra chegue em locais onde o pop massivo domina é um feito e tanto.
some-se à mistura sonoridades múltiplas e bem brasileiras, uma estética caprichada e chegamos a um delicioso fruto tropical trincando de maduro, colhido no tempo certo. a última música do álbum é take your time e relax, uma carta falada pela cantora de si para si mesma em que narra as dificuldades e celebra pequenas mudanças de pensamento e atitude. é singelo e especial que caju termine com os versos:
“é preciso ser o retrogosto da boca
e ser eterno em alguma memória.
seu nome não é caju à toa”.
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
Estou viciada nesse álbum! Caju, Febre e Ao teu Lado são minhas favoritas até agora <3
Que leitura gostosa e que álbum bom!