chorando feito fogo à luz do sol
#45: choremos por gal e por um futuro próximo em que tudo vai mudar, mas lembremos de celebrar a grande artista que ela foi.
olá, tudo bem?
há uma semana eu não tenho feito outra coisa senão ouvir gal. quando não tô fazendo algo imperativo, é em sua voz que me aninho. e às vezes choro sentido. choro porque ela deveria ser imortal. deveria ser parte do contrato: os grandes não devem ir embora. porque é como se a vida perdesse um dos ganchos que nos sustenta.
se quase todos nós ouvimos suas músicas desde que nascemos; se não sabemos mais pensar numa música sem dissociá-la de algum momento da nossa vida; se perdemos nossos narradores de coro grego, como tocar o barco adiante?
porque, não sei vocês, mas pra mim a música popular brasileira é a maior forma de arte no brasil. disparado. se a gente parar pra pensar dá pra citar uns 50 grandes romances da literatura brasileira. nesse meio-tempo, podemos lembrar de pelo menos umas 200 grandes canções eternas do nosso cancioneiro.
pra cada machado de assis, deus nos deu um caymmi, um cartola, um noel, um caetano, um chico, um gil, um roberto, um erasmo e uma marília mendonça. e não bastasse nos agraciar com tantos compositores incríveis, ainda fomos presenteados com o que há de melhor dentro do que já bom: a voz das cantoras.
claro que há grandes homens cantando, mas é na voz das intérpretes que o mundo faz sentido e é mais bonito. e nada vai ser mais bonito que a voz da gal cantando absolutamente qualquer coisa. num país de grandes cantoras, a voz da gal ainda é a coisa mais bonita que o brasil já produziu. e é pra isto este texto: pra celebrar uma das mulheres mais importantes da história do brasil.
sim, é isso. pense num grande homem da música brasileira. roberto carlos sempre será o roberto carlos. tom jobim sempre foi o tom jobim. não há outro caetano que não seja o caetano veloso. o mesmo para milton, gil, chico, djavan. todos grandes, porém únicos. mas a gal foi todos eles e muito mais. em quase 50 anos de carreira, ela sempre esteve à frente da locomotiva que era a cultura popular brasileira.
moderna, esteve em ebulição nos anos de chumbo. da ditadura à abertura, ela esteve onipresente, sempre testando os limites, jogando o leite mal na cara dos caretas. a capa de índia, com um close no corpo da diva parece normal hoje, mas foi uma afronta nos anos 70, tendo que ser vendida em um plástico escuro. se hoje temos artistas se apresentando em trajes mínimos, livres no palco, gal teve que sofrer censura e julgamento pra isso.
cantava de tudo com uma voz absurda, inigualável. sensual, lânguida, urgente, séria, mas sempre política. tudo nela era manifesto. nunca vou me esquecer de gal no fantástico, cantando brasil de cazuza com os seios à mostra no show o sorriso do gato de alice. me lembro até hoje o impacto daquele corpo livre, forte, entregue, numa idade em que eu nem sabia se as pessoas podiam se mostrar assim em público. não sei explicar por que, mas isso formou meu caráter. é dessas imagens que impactam e deixam marca.
mas pra mim o mais marcante foi ter falado um dia com ela por telefone. eu, estagiário de redação, recebi a missão e tremi na base. em maio de 2015, a entrevistei sobre estratosférica, álbum que sucederia o tão incensado recanto. que missão! me preparei o melhor que pude, ouvi o disco incontáveis vezes e no maior dos cagaços, liguei pra produtora dela. em um papo curto (eu tinha 15 minutos, terminei com 25), ela falou sobre o disco, a carreira e também sobre arte periférica, funk, maioridade penal, e no meio do papo, me soltou um “bicho, eu não tinha pensado nisso”, que eu não coloquei na matéria, mas guardei no meu coração para sempre.
a matéria não existe mais na internet, porque tanto o site da gal quanto o do jornal em que eu trabalhava apagaram grande parte do acervo. uma tristeza, porque eu queria poder deixar aqui um trecho dessa entrevista. não era pra ser, paciência. outra memória maravilhosa foi ver o show recanto na cidade de goiás, ao ar livre. gal putaça com um retorno que não vinha, parou uma música no meio, “vocês merecem ouvir essa música em melhor qualidade, vamos fazer de novo”. depois, já alegrinha de uísque, viu luzes no céu de goiás “agora eu vi um clarão bem ali, atrás de vocês” e chamou goiás velho de “velha goiânia”. um barato total.
por inúmeras razões, a partida de gal me deixou chorando feito o fogo à luz do sol, pra citar uma de minhas canções preferidas. mas acho que o que dói é que a cada vez que um artista com um legado desse vai embora, parte da nossa história vai junto. a geração dela foi, sem comparação, a mais revolucionária de todas. e estão todos aí, na ativa, mas aos poucos, vão dizendo tchau. rita lee se despediu dos palcos, milton faz sua última turnê. se fizeram eternos porque cantaram a vida de muitas gerações.
eu choro porque é bom chorar, porque é bom lembrar. porque nada vai ser mais puro, forte, sincero e bonito que gal cantando palavras no corpo, que agora habita o repeat do meu som:
“ninguém diz eu te amo, ninguém diz eu te amo, ninguém diz eu te amo como eu”.
TOP 10
minhas preferidas da gal
vaca profana
baby
dê um rolê
brasil
sua estupidez
lágrimas negras
negro amor
como 2 e 2
palavras no corpo
jabitacá
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júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor do livro cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponível em e-book na amazon.