aleluia, gretchen
#139: o que podemos aprender com um ícone da cultura popular brasileira a partir do documentário "gretchen filme estrada"?
o ano era 1976. a normalista maria odete miranda descia de um ônibus na praça da república, em são paulo quando viu na porta de um cinema algo que chamou sua atenção. recém chamada para ser a “rainha do rebolado”, ela precisava de um nome artístico, já que maria odete não era lá muito sensual para ser digno de uma musa calipígia. quando passou pela porta do cinema, a inspiração veio: em cartaz, o filme brasileiro aleluia, gretchen, um drama sobre uma família alemã fugindo do nazismo. o filme obscuro virou poeira na memória cultural do país, mas seu maior legado foi batizar uma das atistas mais populares do brasil, a gretchen.
o ano era 2008. três décadas se passaram desde que gretchen havía saído do anonimato para ganhar o mundo. mais que uma cantora, era um ícone pop, apesar de já estar em franco declínio. depois de varrer o brasil todo esse tempo com seu rebolado, ela procurava aposentar o bumbum e começar uma carreira totalmente diferente. naquele ano a cantora concorreu à prefeitura da ilha de itamaracá, em pernambuco, lugar que havia adotado como lar anos antes. este percurso entre abandonar a rotinas de shows em circos mambembes e empreender uma nova carreira foi documentado por eliane brum e pascoal samora no filme gretchen filme estrada.
não sabemos o ano específico, mas em algum momento da década passada um jovem gay cronicamente online estava com insônia e resolveu buscar na internet algum tipo de distração. talvez ele tenha digitado no google “filme da gretchen”, buscando ver o famigerado filme pornô que gretchen topou fazer, com o então marido, pela produtora brasileirinhas - e do qual se a arrependeu logo em seguida. ou talvez tenha buscado cortes da participação da estrela na quinta edição do reality show a fazenda, no ano da graça de 2012.
fato é que essa bicha de fórum foi parar em gretchen filme estrada no youtube. e ali achou uma mina de ouro: os memes da gretchen, um capítulo à parte na história da cantora e da cultura popular brasileira do século 21. apesar de ser um documentário bem acima da média, o documentário em certo ponto perde a mão ao tentar enquadrar e explicar seu objeto. e mais ainda quando tenta ressaltar a todo momento um lado quase folclórico da personagem.
mas acontece que gretchen é uma gata escaldada, e com trinta anos de vida pública nas costas e sabe como ninguém que narrativa ela quer contar. e com ela, podemos aprender uma série de lições para a vida, desses que nenhum textão de linkedin chegaria nem perto. o jeito gretchen de encarar a vida é absolutamente fascinante e neste texto eu quero destacar algumas das máximas do “zen-gretchismo”. vem comigo!
“eu quero ganhar com 6500 [votos], quero ser a maior votação da ilha.”
gretchen filme estrada é um filme político por definição e andou para que democracia em vertigem pudesse voar . e o que caracteriza a nossa heroína é que ela, em nenhum momento, mesmo os mais desafiadores, deixou de mirar o cume de suas ambições. com ela, podemos aprender que sonhar baixo e sonhar alto nos toma a mesma energia.
então se é pra se lançar, que seja tentando chegar o mais longe possível. pleiteando pelo partido popular socialista, ela enfrentou um coronelismo arraigado e obteve meros 343 votos. mas se vemos hoje, números são detalhes, nossa che guevara de top de alcinha fez uma campanha limpíssima e ganhou muito mais que um cargo público. campeã moral que chama, né?
“mesmo que não tenha nada, tem eu. e acabou, eu sou o evento”
eu poderia usar clarice lispector, frida khalo, simone de beauvoir ou simone da simaria para ilustrar o que o autoconhecimento pode fazer pela sua vida. pode parecer o cúmulo da arrogância, mas apenas gretchen pode sintetizar com tanta graça como é importante saber seu próprio valor. seja você o evento também. para quê esperar uma superprodução, saia de casa hoje decidido a acontecer. quer muito fazer uma viagem e não tem companhia? chamou o boy prum cinema e ele te deu um bolo? vai sozinha, boba, seja a grande atração da sua vida, o headliner do seu lollapalooza, a cereja do seu bolo.
“eu sou uma cidadã, a gretchen é um personagem, só vive na televisão”
com tantos anos de vida pública nas costas, a cidadã maria odete entende de mídia como ninguém o que é público e o que é privado e como usar cada versão de si para se comunicar com o público. por isso ela é tão querida: mesmo sendo filmada 24 horas por dia em um reality ou documentário, ela decide e filtra o que cada um vai ter dela. talvez ela nem saiba que alude à psicanálise, ensinando sobre os limites do ego, e do superego. há uma diferença entre quem somos o tempo todo e quem a gente quer que as pessoas acessem e vejam. todo mundo é um pouco personagem de si mesmo. e se tem alguém que não se perde no personagem é a artista gretchen.
“o quêêêê????”
cada ação e reação de gretchen neste filme (e na vida) é um espetáculo à parte, ela fala com o corpo todo. suas caretas, gestos, arregalar de olhos são um discurso tão fluente que suplanta o uso de palavras: ás vezes basta uma interjeição. em uma conversa em off com uma possível eleitora, a cantora é surpreendida com uma proposta de venda de voto. e aqui aprendemos uma lição de fidelidade a aos próprios princípios. gretchen abre o filme dizendo que não vai se vender. e mesmo com menos recursos que os rivais, ela segue desconversando ou mesmo confrontando qualquer possibilidade de burlar o sistema. um exemplo a ser seguido.
“eu sendo prefeita ou não, sempre vou ser a gretchen, conhecida nacionalmente e amada pelo brasil. ninguém vai tirar isso de mim, eu sou um ícone.”
em 2008 gretchen já havia se reinventado tantas vezes que era vista mais como um pastiche de si mesma. a elite intelectual a via como uma figura brega, para os jovens era uma musa decadente, atração das famigeradas festas trash. para os diretores de tv, uma figurinha fácil, intercalando o conga la conga com seus múltiplos casamentos, um freak le boom boom com novas cirurgias plásticas, um je suis le femme aqui, uma eventual conversão evangélica acolá.
mas para gretchen, a despeito de uma carreira em declínio, ela era uma mulher icônica, um marco cultural. e quer saber? ela não estava errada. gretchen era e segue sendo um símbolo cultural do brasil. gostem ou não, há que se admitir que ela representa o que há de mais brasileiro e mais popular na sigla mpb. e a música é uma parte ínfima do seu legado. o grande erro do filme foi traçar um final para a carreira de gretchen, ganhasse ou não a eleição. porque foi exatamente o filme que deu a ela um futuro inimaginável há 16 anos.
quer você seja um jovem cronicamente online ou uma senhorinha que adora uma figurinha de zap, em algum momento você esteve exposto a um gif da artista e na hora soube o que aquela cara expressiva queria dizer. a cara de gretchen é a lingua franca da internet brasileira, ela é um ícone do século 21. e tudo isso veio de uma derrota. a lição é clara aqui: nem sempre o que você semeia hoje vai ser colhido amanhã, mas pra ver frutos, tem que semear. a sorte só premia quem ela encontra em movimento, nada vem de graça.
o doc ajudou a consolidar a carreira de gretchen na mídia, e ela encadeou uma série de reality shows (televisão é cultura), criou uma dinastia de subcelebridades com seus filhos e agregados (fofoca é cultura), se firmou como a principal fonte de gifs e estáticos da internet (meme é cultura) e o ponto máximo de reconhecimento internacional: participou do clipe de swish swish, da cantora pop katy perry (música é cultura, dã).
o ano é 2024. em entrevista para a blogueirinha, gretchen disse que ainda não viu o filme aleluia, gretchen.
ps: este texto surgiu de uma sugestão da queridíssima leitora raísa, lá no formulário para leitores. um super beijo, raísa. e você aí, também quer deixar um recado? clica no botão abaixo e sinta-se livre pra me mandar por privado críticas, sugestões, perguntas, o que seu coração mandar.
júnior bueno é jornalista e vive em buenos aires. é autor dos livros a torto e a direito e cinco ou seis coisinhas que aprendi sendo trouxa, disponíveis em e-book na amazon.
“zen-gretchismo”, sério, eu amo os temas da sua news ❤️ Fun fact: gretchen mora no meu bairro, em Coimbra. Malhamos na mesma academia e compramos frutas na mesma quitanda. Uma simpatia, além de tudo!
sempre descubro uma nova informação sobre a Gretchen kkk agora sei que ela tem um documentário (produzido pela Eliane Brum!!!), que concorreu para prefeita e que participou de um clipe da Katy Perry. realmente, ela é um ícone! as figurinhas dela no zap são as minhas favoritas hahah